Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2011
Poema à ausência das palavras

Para a Gerana Damulakis1,


Havia um canto num livro
Onde uma personagem dormia.
Uma personagem secundária
Que limitava o tempo ouvindo pássaros
E água,
Ignorando a morte destes à sua flor.
Um canto onde os críticos não passavam.
Não se escreviam ensaios sobre tal canto.
Um canto sem rima,
Sem numeração.
Parágrafo isolado da trama,
Sem importância no enredo.
Por isso, um canto.
Quem atravessa uma sala não passa pelos cantos.
Quem atravessa os campos não contorna pássaros,
Mas é por eles contornado.
Havia um canto num poema,
Uma linha, um verso que todos esquecem
Nos poemas que quase todos sabem de cor.
Era o verso que ninguém sabe
E ninguém recorda
Depois do refrão que todos cantam,
Mas que alguns reconhecem quando, ao lê-lo, o espanto acorda
E a alma concorda
Com a inferior decisão de quem escreveu.
Pior é quando, além do verso,
Desaparece o poema.
Não é o canto de dor e desejo que se dissolve nas águas
Onde morre o rouxinol.
Quando o poema desaparece,
No silêncio das palavras que se esquecem,
Há os gemidos surdos das palavras que se não lerão.
Ao arderem os papiros de Alexandria
Ardem os ternos gritos de quem, sem a consolação
De um verso privado que mais ninguém lê,
Mais ninguém vê,
Vê dissolverem-se, como tinta que lágrimas lavam
Os borrões salgados de traços
Já de si apagados, da despedida.
A um canto. Repousa a um canto todo um Canto de Epopeia.
Um canto de sereia onde ninguém chateia,
Onde ninguém nos vê.
Onde ninguém nos lê.
E onde toda uma biblioteca, esbraseada de palavras para sempre caladas, se incendeia.

 

 

1. Cuja ausência, por muitos notada, só ontem foi quebrada secretamente. Serve este poema de presente pelo recente aniversário de alguém que também é, em grande parte, autora deste blogue.

publicado por Manuel Anastácio às 07:48
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Quinta-feira, 27 de Janeiro de 2011
Jesus ou Deus?

Fungo coral Clavaria zollingeri


 

Pedi perguntas a Deus. E Deus, lixado como é, que o diga o Diabo, veio-me com esta. Veio com uma asa avariada, tal como o anjo disfuncional do Caim do Saramago, que Deus não leu, e perguntou-me, com voz trovejante:

 

- DEUS OU JESUS?

 

E eu, cheio de temor a Deus, tendo acabado de ler o início do Oseias, só me ocorreu aquela de tomar como mulher uma prostituta, o que não parece ser conselho divino, não fosse ele lixado como nós sabemos que é. E disse-lhe, ó amigo, lá por ser Deus não quer dizer que agora tem o direito de fazer ultimatos desses. E ele (perdão, Ele) disse:

 

- EU SOU AQUELE QUE SOU!

 

E eu, cheio de temor a Deus, porque Deus é lixado e é mau para os filhos da sua primeira amada só porque são filhos da prostituição (Deus é lixado e faz os filhos pagarem os desvarios genitais dos pais, mesmo que ele tenha participado na ménage), não me fiquei e deixei bem claro que não lhe tinha nada que prestar contas, e que se alguém tinha que prestar contas dos meus defeitos era ele (perdão, Ele - que se lixe o perdão, ele mesmo) porque ninguém culpa o prato com falha pela falha que tem. Culpa-se o oleiro que, se for bom no seu ofício tem ao menos a piedade de enviar o fruto defeituoso do seu trabalho para o lixo assim que o faz, fazendo-o retornar para a reciclagem natural do Mundo que não criou. Deus há de ter, com certeza, um Mundo, por ele não criado, onde deitar o lixo que nascesse das obras que fez. Mas não o fez porque lhe dá jeito. Viver na eternidade não é coisa que cheire a ninguém. A Perfeição é, mais que tédio, inanidade e falta de imaginação. Deus precisava da Imperfeição humana como de pão para a boca. Fez-nos pequenos, pequeninos, para que não levantássemos a voz. Mas quando levantamos, ele diverte-se. É giro ver micróbios a comportarem-se como gigantes. E ele, divertido, vendo que já tinha lugar ao lado dele no Inferno (porque Deus só passeia no Paraíso pela brisa da tarde, e nem sempre, como fica claro nos primeiros versículos do Génesis), desligou o Caps Lock e deixou de gritar. Imberbe, não trazia traços de velhice. O Deus pai é, na verdade, um adolescente. Uma criançola, para dizer a verdade. Quase que dá, logo à primeira vista, para simpatizar com as suas falhas desumanas - desculpáveis, até porque nunca teve pretensões de ser humano.

 

- Deus ou Jesus?

 

E eu falei com ele com  outros modos. Que te interessa o que eu penso? Não sabes tu já o que eu penso?

 

- Se soubesse, não te tinha dado liberdade para fazeres as asneiras que fazes. Não coloquei câmaras de vigilância no cérebro de ninguém.

 

Isso fez-me simpatizar com Ele (ele, perdão), confesso. Quer dizer que não sabes tudo?

 

- Claro que não. O Espírito Santo é que anda por aí a espiolhar a trama do Mundo, não vá haver um paradoxo que me leve com o resto num estouro, para o nada.

 

E interessa-te o que eu penso?

 

- Tudo o que é humano me interessa. Por isso criei o Homem. À minha semelhança, mas não igual a mim.

 

Inferior a ti?

 

- Não diria tanto. Em termos de comparação de valor, vamos dar ao mesmo.

 

Isto fez-me simpatizar mesmo com ele. Pareces-me mais humano do que pensava. Mais que a maioria dos humanos.

 

- A culpa de me imaginarem de certa maneira é apenas da responsabilidade dos seres humanos. Volto à pegunta inicial: Deus ou Jesus?

 

Mas tu és Deus. Estou a falar contigo. E não tive o privilégio de falar com Jesus. E, confesso, pelo que sabia de ambos, que Jesus era melhor peça que tu.

 

- E se Jesus fosse Eu, de facto?

 

Não acredito. Sois muito diferentes.

 

- Somos mesmo?

 

Não. De facto, sois iguais. De facto, sois iguais a todos nós. Filhos da prostituição, citando Oseias.

 

- Estás a chamar-me o quê?

 

Isso mesmo, mas sem ofensa.

 

- ... Tu o dizes.

 

E o seu olhar de sofrimento fez-me ter compaixão dele e aceitei, por fim, o lugar reservado no Inferno, sem orgulho, sem resignação. Deus não é perfeito. E Jesus não ressuscitou.

 

Porque nunca morreu.

 

E Deus tem o dom de nos comover, fracos que somos.

 

 

...

 

 

 

- Assim, Deus vem ter contigo para discutir um assunto sério e resolves tudo com meia dúzia de frases, sem qualquer nexo?

 

Acho que foi revelação divina. Algo que nunca saberás o que é. A intuição a Deus não pertence.

 

- Confesso que, ao menos, agrada-me a conclusão. Temos a Eternidade para discutir os pormenores.

 

Tu o dizes.

 

 

 

...

 

 

- Ainda assim, a pergunta não era "Deus ou Jesus", mas "Jesus ou Deus".

 

Tens razão. Dá para outro texto. Mas tu é que me deste a volta e trocaste a ordem. Não existe a propriedade comutativa da interrogação.

 

- Tenho sono.

 

Já tinha reparado.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:02
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Terça-feira, 25 de Janeiro de 2011
O Poema de Fernando Pessoa que inspirou o poema que publiquei ontem - em resposta à Gláucia Lemos...

Anémona Entacmaea quadricolor

 

Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.

Nem tão longe e nem tão perto.

Na medida mais precisa que eu puder.

Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,

Da maneira mais discreta que eu souber.

Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.

Sem forçar tua vontade.

Sem falar, quando for hora de calar.

E sem calar, quando for hora de falar.

Nem ausente, nem presente por demais.

Simplesmente, calmamente, ser-te paz.

É bonito ser amigo, mas confesso é tão difícil aprender!

E por isso eu te suplico paciência.

Vou encher este teu rosto de lembranças,

Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias...

 

Fernando Pessoa

publicado por Manuel Anastácio às 07:13
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Segunda-feira, 24 de Janeiro de 2011
Em resposta a um poema de Fernando Pessoa

 

 

 

Sommarnöje, de Anders Zorn (1886)

 

 

Pedi a tua amizade quando, atrás das grades,
Reconheci os mesmos traços da minha solidão.
E não quis roubar-te o sossego que eu não tinha,
Antes, disse-te que te queria como amigo.
E não riste do meu pedido
Nem disseste que sim.
Foste apenas o gesto que faltava
À simples realização de ser pessoa.
Sem o interesse do desejo
Ou a desconfiança da necessidade.
Havia apenas entre tu e eu uma saudade desinteressada.
Havia um cheiro a nada
No tudo que nos unia, e era um nada como aquele nada
Em que Deus, alheio às causas, todos os dias nos recria.
Pedi a tua amizade
E deste-me apenas a tua presença
Sem qualquer sinal de possessão ou de pertença.
Já sabias então que ser amigo
É nem querer sê-lo.
E é tão difícil aprender a esquecer o que é suposto para o ser!
Suplico-te paciência,
E talvez encha o teu rosto de lembranças.
Dá-me tempo, para acertar no tempo certo, na medida certa,
O que nos uniu - foi esse tempo e o mesmo pedido
De remendar nossas distâncias.

publicado por Manuel Anastácio às 23:20
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?

Façam-me perguntas.

 

Preciso de perguntas. Estou farto de afirmações.

publicado por Manuel Anastácio às 22:44
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