Sábado, 29 de Maio de 2010
O 6.º F

O 6.º F é o meu Inferno. A minha dor. O meu martírio.

 

Hoje, numa só aula, dei a metade da turma (a que se dignou a ouvir-me) toda uma unidade sobre o sistema circulatório e o sangue (composição, função, etc.). E essa metade, ou quase, ouviu-me.

 

E fizeram perguntas.

 

E aqueles que não estavam a ouvir (não estariam?), prontificaram-se imediatamente, quando estava a falar de plaquetas sanguíneas, a mostrarem ao vivo exemplos concretos de coágulos de sangue. Coisa que não falta naquela turma. Debaixo das unhas (dos leitos ungueais), nos braços, nos pescoços (território sagrado dos chupões), nas pernas...

 

Fizeram perguntas. Meu Deus! Há algo mais belo que um aluno a fazer perguntas ao professor?

 

E, ao sair, enquanto pensava, alucinado, sobre o que se falou naquela aula de alunos desinteressados (*eufemismo1), onde se falou de hemoglobina, de Moisés, da Eritreia, da geometria dos favos de mel, de etimologia e línguas mortas, das aurículas e dos ventrículos (falei disto tudo e muito mais, apenas porque eles falaram também)... enquanto pensava nisto, eufórico, percebi que isto é contentar-me com pouco. Mas que não há forma de me contentar com mais.

 

Parafraseando a Carla, hoje, enquanto bebia o vinho de Cabeceiras d' "O Forno", antes de um dia a pão e água, a caminho da manifestação de amanhã (que será fraquinha, até porque os portugueses, masoquistas e crentes (* eufemismo1 - aplica-se aqui a mesma nota de rodapé), morrem de amores pelo Sócrates), há coisas que são como o Cometa Halley. Vêem-se uma vez na vida, no máximo duas. E trazem, na sua cauda, o medo do fim do mundo. Há coisas que, por serem extraordinárias, só podem ser mensageiras de uma excepcional desgraça, como bem sabia o papa Calisto III que excomungou o Cometa Halley. Penso que, tecnicamente, não é possível excomungar uma coisa que, na altura - mil quatrocentos e troca o passo - ainda nem tinha sido baptizada por falta de padrinho. Papa esse, Calisto III, que acrescentou ao final do Pai Nosso (falo de cor, mas parece-me que é a única oração onde encaixa a citação): "Livrai-nos, Senhor, do Diabo, do Turco, e do Cometa". Que eram a Trindade, mas invertida. Ai, se ele conhecesse o 6.º F...

 

1 Quando digo eufemismo, é EUFEMISMO mesmo. Há pessoas que foram canonizadas por menos.

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publicado por Manuel Anastácio às 00:13
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Quinta-feira, 27 de Maio de 2010
Cristo no Monte das Oliveiras - Gérard de Nerval - "As Quimeras"

Deus está morto ! o céu está vazio...

Chorai ! crianças, que não tendes pai!

Jean-Paul

I
O Senhor, de magros braços em riste
Sob árvores sagradas, como os poetas,
Perdido, por longo, em dores secretas,
De confiar nos amigos desiste.

Dirige-se ao grupo que em baixo insiste
Sonhando serem reis, sábios, profetas,
Com almas apenas ao sono afectas,
A eles grita: “Não, Deus não existe!”

“Preferis ignorar a novidade?
Defrontei a cúpula: eternidade.
Aos dias, minhas chagas oficiam...”

“Enganei-vos! Ao abismo atirado
Falta Deus onde serei imolado:
Nem é nem será!”. Mas eles dormiam.

II
Recomeçou: “Fui pela láctea estrada
E tudo encontrei morto p´los seus mundos
Longe como a vida, em veios fecundos,
Ouro em pó indo em onda prateada.

Tudo é secura de ondas ladeada,
Confuso vórtice em oceanos fundos,
Um suspiro move astros vagabundos,
Não, porém, Espírito nesta morada.

Em vez do olhar de Deus, uma só órbita:
Vasta negrura onde a noite habita,
Escura dispersão que, adensando, assombra.

Em torno, um arco-íris em compasso
Devorando em espiral o tempo e o espaço
Para o velho Caos de que o Nada é sombra.”

III
“Destino imóvel, muda sentinela,
Fria Necessidade! Azar que arranca
P’lo deserto, que eterno gelo vela
O Todo em gradual algidez branca.

“Saberás o que a prima Causa anela,
Crerás que um sopro eterno se destranca
P’ra sóis defuntos em mútua querela,
Do que morre para o que novo arranca?...

“Meu Pai! És mesmo tu que sinto em mim?
Vencerás tu a morte para que eu viva
Ou cederás à final tentativa

“Do nocturno anátema querubim?...
Sinto-me só, em pranto e a sofrer,
Se morro é porque tudo irá morrer!”

IV
Sem gemidos, o eterno penitente
Abrindo em vão seu coração ao mundo;
Mas sucumbindo a cansaço profundo,
Ao único em Solima consciente:

"Judas! Do meu valor estás bem ciente:
Vende-me, não esperes mais um segundo.
Agonizo, amigo, e no chão me afundo...
Tu, ao menos, p'lo crime estás presente!"

Mas Judas, longe, ansioso e pensativo,
Manipulado, em remorso agressivo,
Lê nos muros seus negrumes gravados.

Por fim, Pilatos, de César vigia,
Em vaga piedade se alivia:
"Buscai o doido!", diz ele aos criados.

V
Ele, esse doido, sublime insensato,
Ícaro esquecido aos céus retornado,
Fáeton em divo raio olvidado,
Átis belo por Cibele de novo nato.

O áugure lê o flanco do maltrato,
Ébria a terra deste sangue adorado...
Universo nos eixos abalado,
Inferno, do Olimpo, inquilinato.

César, a Júpiter-Ámon invade:
"Que novo deus faz ora o seu império?
É talvez demónio, se não deidade..."

Pende a resposta na eternidade,
E só um pode explicar o mistério:
- Quem deu alma aos filhos da sujidade.

 

(Versão de Manuel Anastácio)

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publicado por Manuel Anastácio às 23:46
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Segunda-feira, 24 de Maio de 2010
Cristo no Monte das Oliveiras, de "As Quimeras" de Gérard de Nerval

Parte I

Parte II

Parte III

 


Não gemeu o eterno penitente
Abrindo em vão seu coração ao mundo;
Mas sucumbindo a cansaço profundo,
Ao único, em Solima,  consciente:

"Judas!  Do meu valor estás bem ciente:
Vende-me, não esperes mais um segundo.
Agonizo, amigo, e no chão me afundo...
Tu, ao menos, p'lo crime estás presente!"

Mas Judas, longe, ansioso e pensativo,
Manipulado, em remorso agressivo,
Lê nos muros seus negrumes gravados.

Por fim, Pilatos, de César vigia,
De vaga piedade se atavia:
"Buscai o doido!", diz ele aos criados.

 

 

(Versão de Manuel Anastácio)

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publicado por Manuel Anastácio às 23:52
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Sexta-feira, 21 de Maio de 2010
Azul

 

Lactarius indigo

Cogumelo Lactarius indigo (Comestível)

 


O céu derramou-se em húmus,

Infiltrou-se, subsolo adentro, pelas nascentes.

E as cianobactérias,

Em sonhos improcedentes,

Na fria cianose dos leitos ungueais,

Traziam nas mãos, morta, a aurora dos Paraísos,

Das Utopias, dos Ideais.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:43
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Quinta-feira, 20 de Maio de 2010
Amarelo

 

 

Uma amargura amarela tinge-me de fel a vista.

Não há poema nem verdade que a tal cor resista.

Icterícia.

Resta-me o fel, que em tom pastel me pinta,

Luminosamente, egoísta.

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publicado por Manuel Anastácio às 21:01
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