Quinta-feira, 25 de Março de 2010
A violência nos filmes de John Ford era verde, como o vale...

Nesta cena de "O Vale era Verde", de John Ford (o maior realizador de cinema de sempre, e um dos melhores contadores de histórias de sempre), o bullying, que ainda não tinha esse nome nessa altura, é abordado de um ponto de vista algo condescendente, ainda que possa reter algumas ideias sábias. Condescendente é pensar que o acto de andar à porrada é potenciador da cumplicidade masculina. Isso já acontece em "O Homem tranquilo", outro grande filme de Ford, onde dois homens, depois de se escavacarem, estabelecem um pacto de tréguas selado na taberna. Há aqui uma moral absolutamente fora de moda que concerne aos estereótipos da masculinidade - e note-se que o fenómeno do bullying é também típico do sexo feminino (de uma forma mais subterrânea mas frequentemente causadora de maior sofrimento que a mera violência física, típica dos rapazes). Lembro-me de um agressor que tira partido (e prazer sádico) da fraqueza das vítimas num filme de Ford: Liberty Valence. Num mundo sem lei, Liberty é o legislador. As vítimas, desejando a instauração da lei, são obrigadas a responder contra Liberty Valence nos termos da sua própria lei, através da violência e do homicídio, para poderem instaurar, finalmente, o estado de direito. Numa escola onde não há lei (ou há, mas cuja aplicação prática se resume à inacção), nada mais resta às vítimas senão aceitar a lei do agressor. Com uma diferença, em relação ao filme: o estado de direito não será instaurado.

 

Mas, deste filme, e desta cena em particular, fica a atitude do pai que paga ao filho por cada nódoa negra e por cada ferida que trouxer da escola, enquanto que a mãe prega as virtudes da não-violência. Nisto, Ford (através do pai) tem razão. Fugir às feridas é semeá-las.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:30
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Grandes parvoíces I

“Os professores não sabem como lidar com o problema. Quando ocorre, muitas vezes não sabem detectar se é bullying ou uma agressão ocasional” diz uma professora de uma escola do concelho da Covilhã, a respeito do Bullying.

 

Gostava de saber quem é que sabe lidar com o problema. Os psicólogos e sociólogos é que não sabem, de certeza. Andam mais preocupados em definir claramente o que é que é bullying e o que é, "apenas" uma surra valente dada por um grunho a outro miúdo mais fraco que não lhe fez nada a não ser... não fazer nada. Não há nada que mais dê gozo aos valentões que encontrar uma vítima que age de forma passiva.

 

Jamais diria a um filho meu que desse a outra face. Eu fi-lo. Não me orgulho de o ter feito.

publicado por Manuel Anastácio às 23:12
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Grandes verdades I

A resistência passiva só funciona se houver câmaras de televisão por perto... ou um telemóvel. Afinal, há o Youtube.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:07
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Segunda-feira, 22 de Março de 2010
Para quê saber a verdade? É muito mais importante que as histórias sejam interessantes que verdadeiras. Concorda?

 "Across The Universe," por Fiona Apple (letra de John Lennon), banda sonora do filme Pleasantville.

 

Tudo o que é interessante é, sempre, uma forma transfigurada de verdade. Uma história torna-se aborrecida quando lhe falta verdade. Não interessa, contudo, tanto saber a verdade, mas reconhecer a verdade. Um físico reconhece a verdade da equação pela sua beleza, pelo equilíbrio que comporta. Pode-se argumentar que quem conta uma história verídica de forma objectiva aborrece os seus ouvintes e que é preferível contá-la deturpando pormenores ou mesmo o seu conjunto, introduzindo a fantasia como elemento potenciador do interesse. Interesse esse que se confunde com a atenção dada à narrativa, ao envolvimento emocional do leitor perante aquilo que lê. Isso não é obrigatoriamente verdade. Há apenas formas diferentes de contar a mesma história, de acordo com a predisposição do ouvinte e de acordo com o seu substracto intelectual e emocional. Uma história contada objectivamente, extirpada de quaisquer intromissões da fantasia é tão interessante para o público capaz de a decodificar e capaz de avaliar a sua beleza intrínseca, quanto enfadonha para quem não está em posição de compreender o alcance da história e a luz que esta espalha sobre determinada região até então obscura desta imensa escuridão que é a realidade. Acontece que considero que tudo aquilo que é feito com verdade, seja verdade racional (lógica e matemática), seja verdade emocional (poética) lança sempre alguma luz sobre algum aspecto da realidade. Se não lança, a história torna-se desinteressante. Desinteressante porque não corresponde ao meu interesse. O capitalista que analisa as tendências do mercado move-se num conjunto de informações, ou histórias que nem sempre são verdadeiras; a contra-informação é interessante, neste sentido, apenas para quem a faz correr, de acordo com os seus interesses; quem está, contudo, dependente da correcta identificação do que é verdade, para bem do investimento do seu capital, atribuirá valor diferencial às histórias, de acordo com o interesse das mesmas para o sucesso do seu negócio. Há aqui também o valor da verdade – não o valor daquilo que é, independentemente da vontade ou interesse do indivíduo – mas o valor daquilo que é construído como sendo a verdade, de acordo com os interesses do investidor. Ora, com o poeta, com o esteta, com o filósofo ou com o contador de histórias, há também uma verdade que é construída e que depende sempre dos interesses que este comunga, ou finge comungar, com o seu leitor. O escritor místico deturpará algumas das mais lógicas conclusões ditadas pela sua lucidez de acordo com os interesses da sua consciência, comprometida numa determinada relação e num determinado investimento amoroso para com a ideia de Deus que, a dada altura da sua vida, adoptou. Contudo, qualquer deturpação, neste sentido, jamais deverá ser considerada como uma mentira, mas como a moldagem do pensamento desviante às formas do paradigma escolhido como imagem ideal da verdade. E para esse leitor, é interessante aquilo que, parecendo fazer perigar a integridade das suas convicções, a elas retorna. O interesse de qualquer história reside sempre no retorno ao ideal com que se descreve e representa a vida (enquanto parte translúcida da realidade que, também, engloba a opacidade da morte). É por isso que a parábola do filho pródigo será, sempre, a mais irredutível forma de uma história – o resto consistirá em florear a errância e o retorno com elementos digeríveis da verdade e realidade de cada um. O interesse que algo suscita depende da sua capacidade de assimilação às nossas estruturas mentais que, por sua vez, são sempre formas particulares de verdade. O que não significa que não exista uma verdade que transcenda todas as verdades particulares. Essa verdade é incognoscível na sua totalidade e até a Ciência, na sua demanda de objectividade, estará sempre condicionada pelas estruturas que dão uma forma a priori à realidade – por isso, até para os fazedores de Ciência, só será interessante aquilo que se adequa ao ideal de verdade que se procura. Mas também, quando nos deixamos envolver numa história desligada da realidade mensurável da verdade científica e cartesiana, seja na história do “Gato das Botas”, seja na “Alice no País das Maravilhas”, seja na “Metamorfose” de Kafka, é sempre à verdade da moral, do quotidiano e do sentido da vida que se volta no final. Nada nos interessará se não nos fizer voltar àquilo que estamos dispostos a admitir como verdade.

 

Para me deixar outras perguntas, a que tentarei responder com verdade, vá aqui.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 00:09
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Sábado, 20 de Março de 2010
Faça lá um poema, ou, então, copie

O Dia Mundial da Poesia vai ser comemorado amanhã no Centro Cultural de Belém com a presença das ministras da Cultura, Gabriela Canavilhas, e da Educação, Isabel Alçada e, entre as actividades previstas, para além de uma maratona a ler Fernando Pessoa, serão entregues os prémios de um concurso escolar, no âmbito do Plano Nacional de Leitura, de seu nome "Faça lá um poema". Até aqui, tudo bem.

 

No regulamento do concurso é dito, entre outras coisas, que:

9. Os trabalhos serão avaliados por um júri de cinco elementos, designados pelo CCB e pelo PNL. O júri terá em conta a correcção da escrita, a riqueza de conteúdo e a originalidade do tema e da linguagem
10. Não haverá recurso das decisões do júri.

 

Há uma certa tendência, nas pessoas íntegras, para acreditarem nos regulamentos dos concursos. Mas sabemos bem que, em geral, os critérios utilizados pelos júris em Portugal são inescrutáveis, se acreditarmos nas suas boas intenções.

 

Ora, o poema que foi indicado como vencedor (1.º Prémio) do 1.º Ciclo, reza assim:

Eu quero ser tudo:
Arquitecta e aviadora,
Actriz de cinema mudo,
Médica ou domadora.


Super-heroína e marinheira,
Alpinista e professora,
Empregada e enfermeira,
Pirata ou engenheira.


Também quero ser escritora,
Polícia, com ou sem multa,
Mas o que eu quero mesmo ser
É uma feliz adulta.

 

 

Vou ter a discrição de não dizer o nome da autora deste poema, porque é uma criança, e a situação que me incomoda não se prende com a honestidade desta criança, mas com a competência do júri e/ou, sabe-se lá, com a honestidade intelectual dos professores que decidiram submeter este poema ao concurso. Está na hora de vos apresentar um outro poema, de José Jorge Letria, que integra um manual escolar do 4.º ano de escolaridade :

 

Eu cá quero ser tudo
Futebolista e arquitecto
Actor de cinema mudo
É preciso é que dê certo.

No fundo o que eu quero
É ser grande e bem depressa
Porque isto de crescer
Não pode ser só conversa.

Quero ser grande em altura
Sem ter projecto nenhum
E quem sabe se hei-de ser
Piloto de Fórmula Um?

Também quero ser marinheiro,
Alpinista e domador
Herói de banda desenhada,
Pirata e aviador.

Quero ser de tudo um pouco
Pois tenho imaginação
Para acreditar que acordo
Com o mundo na palma da mão.

No fundo, quando eu for grande
Sem que isso seja um insulto
O que eu acho que vou ser
Afinal é mesmo adulto.

 

As semelhanças entre os dois poemas são confrangedoras. É particularmente credível imaginar uma criança dizer que quer ser "actriz de cinema mudo" - tão credível que aposto que se lhe perguntasse o que é que é isso de cinema mudo, a menina deveria, provavelmente, fazer um esgar de espanto por tal pergunta já que, provavelmente, nunca pensou nisso. A menina que amanhã irá receber o prémio da mão da Ministra da Educação receberá, também, a excelente lição de que estamos num país onde papaguear, seguir, imitar e plagiar é condecorável. Todos sabemos que vivemos numa cultura de mediocridade, mas há algo em mim, algo que eu devia extirpar pela raiz, caso contrário ficarei com o sangue envenenado à medida que for envelhecendo, que me faz acreditar que não devemos abdicar da luta pela honestidade. E penso que a escola deve ensinar os alunos a não fazerem plágios e a valorizar a originalidade dos seus trabalhos, mesmo que, assim, a qualidade dos textos caia a pique. Ninguém espere sonetos de Camões da mão de uma criança do 4.º ano de escolaridade. Mas seria dignificante esperar que o júri, das duas, uma: ou respeitasse o regulamento e tivesse tido em conta o critério da originalidade (o que implicaria o simples trabalho de casa de dar uma vista de olhos nos poemas a que as crianças têm acesso, ou seja, geralmente, aos que aparecem no manual) ou, então, que quem concebeu o regulamento previsse a hipótese de haver recurso das decisões do júri. Graças a Deus que podemos dizer que o poema não é, palavra por palavra, um plágio, mas, tendo em conta o mérito dos alunos que ficaram com o segundo e terceiro prémio, creio que se devia valorizar o esforço de alguém que tentou acrescentar algo ao mundo e não apenas fazer fotocópias borradas. O bonito da coisa é que o autor do poema quase plagiado (eu retiraria o "quase", mas vou dar o desconto), José Jorge Letria fará parte das comemorações no CCB. Não faço ideia se o mesmo fazia parte do júri que atribuiu os prémios, o que teria a sua graça (o mestre a premiar a discípula?), mas acreditando que está alheio à coisa, espero que não haja escândalo durante a cerimónia. O mal está feito, o júri que pague um almoço ao Letria e fiquemos todos de boca calada, que daqui a uns meses ninguém mais fala ou pensa no assunto. A não ser, claro, uma criança que verá premiada a sua preguiça mental.

 

Finalmente, vou homenagear as crianças que se esforçaram e que terão o sabor azedo dos lugares secundários do pódio, até porque não tenho dúvidas de que já se aperceberam da injustiça. E homenageio-os com a publicação dos seus poemas, com a devida identificação do AUTOR.


Fernando Pessoa
I
Era poeta e escritor
Por quem a gente se afeiçoa
Escreveu poemas para crianças
Chama-se Fernando Pessoa.
I I
Era uma figura engraçada
Pequeno e muito magrinho
Parecia um pequeno triângulo
O seu pequeno bigodinho.
I I I
Na cabeça tinha um chapéu
Os óculos eram redondos.
Usava um casaco comprido,
Que lhe cobria os seus ombros.

 

Beatriz Neves de Carvalho

EB1 de Lombo d’ Égua

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Se eu fosse um lápis…

 

Se eu fosse um lápis
Nas tuas mãos a rodar,
Desenhava o teu rosto
Com um belo olhar.
Se eu fosse um lápis
Desenhava a lua e o mar,
E no imenso céu
As estrelinhas a brilhar.
Se eu fosse um lápis
Pintava rosas, cravos e jasmim,
E com lindas cores
Faria um belo jardim.
Se eu fosse um lápis
Desenhava um balão,
Para andar sempre
No calor da tua mão.

 

Leonor Brito Barata

EB1 TÍLIAS – Agrupamento de Escolas Serra
da Gardunha

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publicado por Manuel Anastácio às 17:16
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