Sexta-feira, 12 de Junho de 2009
Ganhar a Vida

Amanita muscaria. O cogumelo que serviu de casa aos Schtroumpfs, depois de nós, não será a casa de ninguém. Não no sentido de casa. Carregar na imagem para os devidos créditos e licença.

 

Tem este título, belíssimo, uma coisa muito bonita, que não é uma revista nem é um livro, nem uma brochura, mas uma pequena obra de arte, organizada por João Paulo Cotrim, a respeito da iniciativa ou evento, ou que lhe quiserem chamar, chamado "Os Dias do Desenvolvimento 2009" que, este ano, se centrou no Objectivo de Desenvolvimento do Milénio número 7: "Garantir a sustentabilidade ambiental". Hoje em dia, a palavra coisa é mal vista. Por exemplo, Saramago fala da "Coisa Berlusconi" assim como outros falaram de outros seres humanos que deixaram de ser humanos para serem coisas. Na melhor das hipóteses tornaram-se símbolos, e, com mais sorte ainda, símbolos de coisas boas: da verdade, da beleza, da coragem, da bondade, da compaixão, outros tornaram-se em movimentos negativos da força humana. E a força humana é já, em si, negativa. Não tenhamos ilusões. O planeta Terra viveria muito melhor sem seres humanos. Mas se não houvesse humanos, quem daria valor à Vida? Ninguém. Os dinossauros não sabiam que eram terríveis nem grandes, nem grande coisa. Nem sequer eram a coisa dinossauro. Nem sabiam que eram grandes. Sabiam que tinham fome. Sabiam que tinham uma ânsia por sobreviver, moviam-se numa ânsia por se reproduzir, e morriam, numa angústia mitigada pelo facto de não saberem que morriam. Se a Terra rebentasse numa explosão nuclear, atómica ou de pressão de ar, ninguém lamentaria o facto (supondo que alguém sobreviveria) a não ser quem apusesse ao facto de ser, o facto de ser humano. Paul Crutzen fala do Antropoceno para designar a era geológica em que vivemos actualmente. Cientistas não humanos (isso seria porventura possível?) do futuro poderiam bem referir-se às camadas geológicas que variam entre as camadas que denotam a presença de fogo conjugado a restos biológicos a determinadas camadas sedimentares que denotariam uma forte presença de polímeros e, em particular, de hidrocarbonetos. É essa, provavelmente, a marca que a nossa breve passagem pela Terra deixará. Provavelmente, os nossos fósseis não serão particularmente interessantes, apesar de toda a panóplia funerária com que decoramos os candidatos à petrificação semi-eterna. E muito menos interessantes serão para quem não os estudará, nem com eles se emocionará como nós nos emocionamos perante uma lasca óssea de dinossauro ou perante uma simples impressão do exosqueleto de uma trilobite. A verdade é que será uma pena quando morrer o último homem. O mundo será coberto de artrópodes. Principalmente, baratas, sem dúvida. Mas ninguém saberá, nessa altura, avaliar a beleza da Vida. Ela poderá continuar, sem dúvida, esplendorosa como sempre. Cruel como sempre. Mas sem ninguém para dizer como é cruel. É por isso que convinha que, ganhando a Vida, ganhássemos também a Morte. É por isso que escrevemos, pintamos, filmamos e teorizamos. Para ganhar a Morte. Para fazer dela um registo fóssil capaz de evocar o sentimento perdido da beleza. Perdido, sem dúvida. Já entrámos no movimento que nos leva à extinção. E vivemos, antecipadamente, a beleza de não existirmos. Somos mesmo estúpidos. Sem redenção.

 

E, como sempre, não falei do que queria falar. De uma coisa. Bonita.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:20
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Terça-feira, 9 de Junho de 2009
"Lua: a Princesa da Floresta Dourada", de Anabela Lopes

Depois de ler “Lua: a Princesa da Floresta Dourada”, de Anabela Lopes, fiquei com a impressão que este livro, como primeira obra, tem muitas arestas a limar e teria, provavelmente, muito a ganhar se tivesse amadurecido um pouco mais antes de ser publicado. Vou analisar, sumariamente e dentro das minhas competências de simples leitor, não aquilo que eu escreveria, mas aquilo que eu gostaria de ter lido. Repare-se que muitas vezes os criticados rebaixam o estatuto do crítico ao nível da esterilidade antipática. O crítico é aquele que diz mal mas não conseguiria jamais escrever algo melhor. Eu não tenho pretensões de escrever algo melhor no campo literário onde a Anabela está a dar os seus primeiros passos. Eu escrevo mesmo para gente complicada, e um livro de fantasia escrito por mim seria mais parecido com uma mistura de Tolkien com James Joyce do que, no caso da Anabela, com um conjunto de referências da literatura juvenil onde ressalta, obviamente, a figura tutelar de J. K. Rowling, mas também, e isto é importante (não é ironia de mau gosto), dos livros da “Anita” que, aliás, como ouvi à própria Anabela na já referida apresentação do livro na escola e se reafirma na contracapa do livro, é, de facto, uma referência importante no imaginário da autora. Na minha opinião, tirando os livros mais básicos de iniciação ao gosto dos livros (não falo da iniciação à leitura nem de um estádio mais avançado que é o da iniciação à literatura), todos os livros devem ter como público um leitor sem idade. Eu encontro, aliás, esta premissa na estrutura e estilo de “O Principezinho”, do “Peter Pan”, do “Harry Potter”, sei lá… de quase todos os grandes clássicos do que se pode considerar literatura fantástica para crianças. Não sei se o Principezinho se pode classificar nesta categoria, tendo em conta que tem um carácter de alegoria mais acentuado que nos outros casos. Mas há outra categoria de literatura infanto-juvenil que convém trazer ao lume: as obras de Enid Blyton e da Condessa de Ségur. Não sei até que ponto é que a Anabela conheceu estas duas autoras, mas não conseguirei dizer grande coisa sobre “Lua” sem as utilizar também como referência.

 

Comecemos pela estrutura do livro. Em primeiro lugar, é um primeiro volume de uma saga de que este livro é apenas a interrogação inicial. Quanto a mim, há demasiadas interrogações, muitas das quais sem justificação ou que dificilmente serão explicadas de uma forma coerente nos próximos volumes. Anabela não quis dar respostas ao leitor. Quis apenas espevitar a sua curiosidade… Contudo, ao seguir esta estratégia, creio eu, acabou por não se contar quase nada da história. Exceptuando grande parte do livro que analisarei quando falar do seu estilo e linguagem, algumas personagens, que, ainda por cima, parece que só aparecerão lá para o terceiro ou quarto volume (falo eu à sorte) ou que jamais voltarão a aparecer, são apresentadas de forma demasiado sumária. Contudo, das duas personagens que morrem neste volume – uma delas, Safira, a mãe de Lua e a segunda, uma outra que não revelarei por respeito a eventuais leitores, nenhuma delas se impõe verdadeiramente porque lhes falta uma de duas coisas: ou humanidade ou função emotiva ou alégorica. Como tornar uma personagem algo mais que um mero figurante? Safira é apresentada como uma personagem típica de conto de fadas, que percorre sozinha a floresta, tem uma especial empatia para com os animais e com a lua, não tem pretensões em especial, e é dona de uma vaidade nula, em contraste com uma óbvia figura de grande beleza física. Logo no início do romance, altura em que, numa analepse, Safira é a dona das páginas, se prevê a sua morte próxima com o nascimento de Lua. Assim se verifica. Lua nasce órfã de mãe e é rejeitada pelo pai que vê nela a culpada da morte da sua amada. O resto do livro, emocionalmente falando, andará à volta deste ressentimento de Rafael, o Príncipe herdeiro, para com Lua. Mas o ressentimento não é desenvolvido. De início ainda tinha a esperança que Rafael tomasse a cor negra de um Darth Vader e que Lua teria, de alguma forma, combater no seu próprio pai, o mal. Mas não. Isso seria um pouco mais interessante, mas seria, indubitavelmente uma tortura atroz para uma personagem como Lua, que vive num romance onde ninguém sofre de verdade. Tudo se resolve com frases de arrependimento, num mundo concebido segundo o esquema geométrico e claro dos livros da Anita. Espero que a Anabela não se zangue comigo, mas eu preciso de dizer-lhe que é preciso que ela abandone por completo o universo simples dos livros da Anita. Nesse universo não existe narrativa, não existe história, há apenas um suporte residual de texto para um conjunto de figurinhas apasteladas que nos encantavam a infância. Os livros da Anita não são, bem vistas as coisas, livros no sentido literário do termo. São a exposição de situações que servem a ilustração. Ora, “Lua” não tem ilustrações. Mas o baile em que Safira se torna oficialmente a noiva de Rafael não foge muito ao que poderia se poderia chamar “Safira (Anita) vai ao baile”, não fosse a característica fugidia da personagem que, arrastando Rafael atrás de si, segue em direcção ao mausoléu onde repousa o corpo da sua mãe, sobre o qual as flores jamais murcham. Há aqui um elemento fantástico que se adivinha importante para o resto da história, mas que, tal como outros pormenores potencialmente interessantes da história, não é desenvolvido. Sabemos que a mãe de Safira, mulher do que nos é (pelo menos neste volume) apresentado como sendo apenas um pobre lenhador, jaz num mausoléu em volta do qual não nasce qualquer vegetação. Aliás, o momento verdadeiramente interessante, no baile, do ponto de vista literário, é exactamente essa fuga do ambiente feérico e estereotipado para o ambiente gótico da sepultura da mãe de Safira.

 

Dizia eu que uma personagem, para não ser meramente figurante no romance, tem de ter alguma consistência humana, funcionalidade emotiva ou alegórica. As personagens que vão aparecendo em Lua (e não são muitas) parecem ter apenas função dentro de um enredo que ainda não nos é revelado. Do avô de Lua só sabemos que é um lenhador que faz bom chocolate e que gosta muito da sua neta. Ora, isso não o faz muito diferente de qualquer avô. E, na verdade, não seria preciso muito. É preciso um pormenor memorável, uma história dentro da história que explique quem é aquele avô. Alguma coisa que nos faça querer tê-lo também como avô. Até Rafael, o Príncipe herdeiro, que tem tudo para ser uma personagem emocionalmente rica, apenas demonstra o seu desgosto pela morte da sua mulher durante o parto recusando falar com a filha. Isto é, tem presença no romance pelo lado negativo: não é importante pelo que faz, mas pelo que não faz. Faltam momentos, acções, conversas, que fujam da linha principal da narrativa, mas que dêem consistência à personagem. Quando Rafael chora a sua desgraça, não basta descrever o seu choro, gritos e desejo de imediata resolução através de um momento dramático apenas frustrado pela intervenção de Rossana. Anabela julgará, porventura, que toda a gente sabe o que se passa na cabeça de Rafael: perante uma perda e perante o seu falhanço como pai, acaba por descambar num acto estúpido de cobardia. Mas é aqui que a Anabela precisa de parar um pouco mais. É sua função, como narradora, dizer o que se passa naquela cabeça. Deve deixar um pouco mais de lado a descrição dos actos quotidianos e entrar mais nos raciocínios da personagem. A descrição dos gestos exteriores é algo próprio dos livros da Anita, mas não é já adequado ao nível de um romance juvenil de fantasia, com laivos góticos. Entrar na cabeça das personagens exige uma forte dose de duas coisas, sem as quais não se poderá ser um bom autor de ficção: crueldade e compaixão. Crueldade, porque é preciso pôr as personagens frente a situações particularmente dolorosas. Mas o leitor, por mais que torça para que tudo corra bem, é sempre um espectador sádico. Não basta dizer que tal personagem morreu. É preciso que essa morte tenha um significado mais profundo. Por exemplo: os pais do Harry Potter morrem. Em que situação? Num sacrifício. Oferecem-se em sacrifício. Aí está tudo. Crueldade por parte da escritora, que imagina algo de tão horrível como dois pais oferecerem a vida para que o seu filho lhes sobreviva, mas também a compaixão da autora que, lentamente, em situações emocionalmente fortes, nos vai mostrando o que se escondia atrás daquela morte. As situações reveladoras devem, contudo, num romance deste género, evitar o diálogo pelo diálogo. O narrador tem de conceber situações que obriguem as personagens a descoser-se. Não basta juntá-las a conversar, a confessar e a expor os seus sentimentos.

 

Outra característica de “Lua” é a longa descrição de procedimentos que não têm grande significado nem relevância para a história. É isso que designo por um certo “espírito dos livros da Anita” e que só poderia ganhar outra profundidade se as situações fossem trabalhadas ao género de Enid Blyton. Por exemplo, na cena em que Lua visita o avô lê-se: “(…) as refeições eram preparadas à lareira e Lua dizia que os cozinhados do avô eram melhores que os do castelo.

            - Têm mais sabor – afirmava ela.”

Há aqui um elemento narrativo que, obviamente, não é importante para a história, mas que faz parte das coisas que se esperam de um romance: ver as coisas sob os olhos de outros. Mas o que falha aqui, em termos narrativos? A Anabela refere-se a algo que faz parte do passado imperfeito, algo que “era assim”. Mas a citação não nos faz crescer a água na boca como a menção dos scones, queijo com marmelada e outras iguarias prosaicas que enchiam os livros de Enid Blyton. Por que razão? Porque Blyton criava uma situação concreta onde o elemento fome acentuava a urgência daquelas menções gastronómicas. Os Cinco estavam acampados, ficaram sem comida, puseram-se à procura de uma quinta e só depois de desesperarem é que encontram uma velhota simpática que lhes faz scones deliciosos e não sei que mais. Em “Lua”, a referência aos cozinhados (palavra demasiado vaga) apoia-se numa passagem onde se descreve a casa do avô. Não há urgência nem apetite. Aliás, nem teria de haver, mas Anabela realça a alguma importância da passagem ao citar a própria Lua numa situação abstracta onde diz “têm mais sabor” – citação essa que não acrescenta nada que não pudesse ser incluído na primeira frase: “as refeições eram preparadas à lareira e Lua dizia que os cozinhados do avô eram melhores que os do castelo e que por alguma razão tinham mais sabor.” – pode parecer uma ninharia, mas a fluência narrativa, para o leitor é feita destas pequenas coisas. Se uma frase de Lua é destacada num parágrafo à parte, espera-se que esse parágrafo acrescente algo. Se não acrescentar nada, ficamos com a impressão desagradável da repetição desnecessária.

 

Da mesma forma, há um excesso de descrições de coisas que não merecem grande atenção do leitor ou cuja beleza se resume ao facto de se dizer que é belo. Por exemplo, fala-se nos vitrais do castelo e nos efeitos de luz muito apreciados por quem vivia no castelo. Posso colocar imediatamente a questão: que efeitos eram esses? Por que razão é que eram apreciados? E a narradora dizer-me imediatamente que isso não interessa para a história, mas a verdade é que se não interessa para a história, não deveria ter sido referido. Por exemplo, os efeitos de luz poderiam ser referidos como sendo um contraste entre a austeridade  branca das paredes, semelhantes a uma banal prisão e a sugestão de magia e cor que vinham do exterior, fazendo menção ao constante anseio de Lua em sair do castelo. Enfim, perante as descrições estéreis, o escritor deve, das duas, uma: ou eliminá-las (e o computador é tão bom nisso, nessa carnificina de palavras que não levam a lado algum) ou torná-las férteis. Como? Contando uma situação em que se dá um valor acrescentado ou significado à descrição. Eu sei que muitas das descrições da Anabela têm exactamente como fim a transmissão de algum sentimento de tédio de Lua entre as paredes do Castelo, mas devemos evitar que esse tédio passe também para o leitor. Cada frase deve trazer em si sempre mais que aquilo que descreve, de modo a prender a atenção do leitor.

 

Quando falo do amadurecimento do livro, refiro-me também a algumas incoerências no texto. Rossana é apresentada como uma simples criada, mas a determinado momento, depois de uma “revelação”, em conversa com Rafael, flutua entre um tratamento formal (Majestade) com outro mais familiar (“Parece um velho a falar…”) que rapidamente se transforma numa intimidade forçada sem que haja, de facto, motivos para considerarmos essa intimidade verosímil. Na verdade, as situações pouco verosímeis multiplicam-se como o tratamento caseiro que é dado ao professor Guidion que, depois de uma suspeita de actos criminosos, é deixado em liberdade e ao qual apenas se diz “amanhã compareça no castelo”, ainda que, depois, mantendo-se as mesmas suspeitas, já incorra no perigo de ser sentenciado às masmorras. Tudo se resolve com conversa, como no Conselho Executivo de uma escola portuguesa. Com a diferença que em “Lua” todos são sinceros no que dizem, mesmo quando escondem alguma coisa. Outra coisa que aumenta a inverosimilhança em “Lua” é a relação entre o mundo mágico e o mundo banal em que Lua se move. Ninguém fala de feiticeiros, há acontecimentos oficiais importantes que são referidos (como o baile ou a apresentação de Lua), sem que haja presença de feiticeiros, mas o acesso ao mundo mágico não é, de modo algum, um segredo oculto como o que verificamos no universo de Harry Potter. A muralha de quartzo azul (referida, a certa altura, como tendo dez metros e, noutra página, como tendo dez centímetros – gralha um pouco grosseira para se deixar passar) não existe num qualquer ponto invisível aos olhos dos não feiticeiros – ou nada nos leva a pensar o contrário. Mas esta indefinição é, por vezes, o que banha a narrativa de um tom de luar fantástico, mas pouco explorado, o que resulta numa certa frustração por parte do leitor.

 

Depois, nota-se por vezes alguma utilização de termos menos adequados ao registo literário. Por exemplo, “biodiversidade” é um termo adequado a um artigo jornalístico sobre um parque natural, mas não é o mais adequado para se referir à simples diversidade de animais e plantas à medida que se avança pela Floresta Dourada. A utilização de termos do campo científico num registo que se quer de fantasia cria uma fricção algo desconfortável.

 

Finalmente, tenho a felicitar algumas imagens mais bem conseguidas, como a fonte de pedra em forma de árvore ou a descrição viva do primeiro encontro com Renato, onde se multiplicam pequenas situações, como a explicação da etimologia do nome do rapaz, a consequente piada sobre o nome de Lua, e a descrição dos movimento das personagens que, tal como o balançar da ponte, reflectem as variações de humor infantil de Lua, que aqui aparece como criança e não como uma menina crescida para a sua idade, e que supostamente sofreu “mais do que qualquer outra pessoa na Floresta”, o que, noutra passagem, me parece ser algo leviano de se dizer: os sofrimentos de Lua não são assim tão excruciantes e parecem-me, mais, as simples birras de uma adolescente mimada que se aborrece por tudo e por nada e que, por acaso, tem um pai que tem com ela uma má relação; note-se que a má relação com o pai não a torna menos mimada, nem justifica que se porte de outra maneira que não a de uma simples menina mimada sem nada de especial que a distinga de qualquer outra criança da sua idade.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 22:42
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Sábado, 6 de Junho de 2009
Livro da Sabedoria IX - ou a identidade da Razão com o Espírito Santo

Nulla in Mundo Pax Sincera, de Antonio Vivaldi. Jane Edwards, soprano; Geoffrey Lancaster, cravo; Gerald Keuneman, violoncelo; arranjo de Edwards / David Hirschfelder. Vídeo inspirado nas esculturas luminosas de Julian Opie.

 

Deus dos nossos pais e Senhor de Misericórdia que tudo criaste através da Tua Palavra! Formaste o Homem para que, com a Tua sabedoria, fosse senhor das Tuas criaturas, para governar o mundo com santidade e justiça, e exercer o julgamento com rectidão de alma. Faz-me chegar a Sabedoria, ao Teu lado entronizada, e não me excluas da dignidade de ser Teu filho.

 

Teu escravo, filho da Tua escrava, homem fraco e efémero, sou incapaz de compreender e aplicar a Tua justiça. Mesmo o mais perfeito dos homens, sem a Sabedoria que de Ti provém, nada seria.  Fui escolhido por Ti para que governasse o Teu povo e julgasse os Teus filhos e as Tuas filhas. Mandaste-me construir um templo sobre o monte que santificaste, um altar na cidade em que acampaste, à imagem da habitação que preparaste desde o início. Ao Teu lado, a sabedoria conhece as Tuas obras e testemunhou a criação. Sabe o que agrada aos Teus olhos e o que e conforma aos teus mandamentos.

 

Recomenda-me, do teu trono de glória nos céus santificados com a Tua presença, à Sabedoria, para que me guie nos meus trabalhos e me ensine o que Te agrada. Ela tudo sabe, tudo compreende. Guiar-me-á em prudência nas minhas acções e proteger-me-á na luz da sua glória. Ser-Te-ão agradáveis, então, as minhas obras, o governo do Teu povo será justo e serei digno do trono de meu pai.

 

Quem conhecerá a vontade de Deus? Quem imaginará o seu desejo? Os pensamentos dos mortais são mesquinhos e o nosso raciocínio falha, porque a corrupção do corpo tem peso sobre a alma e a morada terrestre oprime com as suas preocupações o espírito e as idéias. A custo conheceremos o que está na terra, a custo chegamos ao que está ao alcance das nossas mãos. Mas quem descortinará o que aos nossos olhos o céu oculta? Quem compreenderá os teus planos, se não lhe deres, antes, a sabedoria que envias do alto com o teu espírito santo? Só assim se tornam rectos os caminhos de quem vive sobre a terra. Só assim aprenderam os homens o que te agrada. Salvos por meio da tua sabedoria".

 

Em comentário ao meu comentário à minha versão do capítulo III do Primeiro Livro dos Reis, a Maria Helena citou o capítulo IX do Livro da Sabedoria, atribuído, segundo a tradição, a Salomão, correspondendo, de certa forma, ao seu pedido de sabedoria referido na passagem bíblica anterior e ao seu correspondente elogio. Tal como a Maria Helena, concordo com o facto de o Antigo (e o Novo) Testamento constituírem peças fundamentais para compreendermos a forma como compreendemos o Mundo. Eu não tenho, pessoalmente, fé numa providência divina, mas acredito (logo, tenho fé) que a sabedoria é transcendente ao homem, é independente dos seus interesses passageiros e individuais, e que só é sabedoria se se identificar com a bondade, com o Amor, com a tolerância e com a justiça. Podemos considerar que Deus é isso apenas (e já seria tanto) ou ser mais, e ter uma existência pessoal (o que, na minha concepção, porventura limitada, apenas o limitaria, logo, o mais seria menos). Mas há um fundo comum onde até os ateus ocidentais deveriam estar de acordo. Diria mesmo que, nos tempos que correm, vejo mais esta capacidade para receber a sabedoria que vem do alto entre muitos daqueles que não acreditam de forma confessa em Deus do que em muitos cujos olhos ficam raiados de ódio sempre que alguém diz que é ateu ou agnóstico. Tais crentes, na minha humilde opinião não confessional, estão muito afastados deste Deus entronizado ao lado da Razão e não são dignos de entrar no número dos seus filhos. Tais crentes julgam que acreditar numa só sabedoria, que desconhece a dúvida e o relativismo, é partilhar da luz que emana do lado direito de Deus. Ao ler este capítulo confirmo que o caminho da dúvida e da tolerância é o caminho recto e o caminho da justiça. Este texto esclarece que a sabedoria de Deus não está consagrada nas leis nem nos mandamentos, mas que só a iluminação por parte da sabedoria transcendente poderá dar sentido às leis e aos mandamentos. Quem segue os textos sagrados na sua literalidade ou através de interpretações dogmáticas quer fixar a sabedoria num suporte legível como um catecismo. Mas neste texto leio que nada será compreendido sem que a sabedoria ilumine directamente aquele que quer compreender. Sendo Deus Amor, não duvido, tenho fé, de que essa luz que envolve a razão traz sempre consigo um sorriso de apoio ou uma lágrima de compaixão e nunca, nunca, a presunção dos moralismos que se querem aplicar, indistintamente, aos outros.

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publicado por Manuel Anastácio às 17:27
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Sexta-feira, 5 de Junho de 2009
Primeiro Livro dos Reis III - ou a definição da Justiça

Julgamento de Salomão. Igreja dos Peregrinos de Frauenberg na Estíria, Áustria, fresco do tecto da reitoria. Autor desconhecido. Século XVII.

 

Salomão, ao casar-se com a filha do Faraó do Egipto, tornou-se seu genro e levou-a para a Cidade de David, onde estava a construir o seu palácio, o Templo de Jeová e as muralhas de Jerusalém. Nesse tempo, o povo oferecia sacrifícios nos lugares mais altos, já que ainda não tinha sido contruído o Templo em honra do nome de Jeová. Salomão, fiel aos preceitos de seu pai, amava Jeová e oferecia-Lhe sacrifícios e incenso nos lugares mais altos.

 

Sendo rei, foi a Gabaon, de todos os lugares altos, o mais importante de todos, para oferecer sacrifícios. Foram mil os sacrifícios oferecidos por Salomão nesse lugar.  E foi em Gabaon, em hora nocturna, que Jeová apareceu em sonhos a Salomão. E Deus disse-lhe: "Pede. Diz-Me o que queres". Salomão respondeu: "Demonstraste grande afeição pelo teu escravo de nome David, meu pai, porque, sob o Teu olhar, caminhou fiel, justo e recto no seu coração de acordo com a tua vontade. Em resposta a tal sinceridade, deste-lhe este filho, que agora está sentado no mesmo trono. Foste tu, Jeová, meu Deus, que fizeste rei este Teu escravo, no lugar de David, meu pai. Sou muito jovem e não sei como governar. Teu escravo, vejo-me entre o povo que escolheste, numeroso e incalculável, de tal modo é esmagora a sua dimensão. Peço que me ensines a ouvir, para que saiba governar o povo que é Teu, e para que saiba distinguir o bem do mal. Caso contrário, como poderá alguém governar tantas almas?". Ficou o Senhor satisfeito com tal pedido. E disse-lhe: "Pediste isso. Não pediste para viver mais, nem para ter mais, nem a morte de quem se te opusesse. Apenas pediste discernimento para ouvir e, assim, julgar em sabedoria. E ser-te-á concedido. Dar-te-ei uma mente plena de sabedoria e perfeição no raciocínio, tal como nunca ninguém teve antes de ti ou terá depois. Dou-te também o que não pediste: riqueza e glória inigualáveis entre todos os reis que alguma vez contigo se quiserem comparar, para toda a tua vida. E, dependente da observação que fizeres dos meus mandamentos e estatutos, tal como fez David, teu pai, conceder-te-ei a longevidade que não pediste". Salomão, acordando, apercebeu-se de que tinha sido um sonho. Seguiu para Jerusalém e postou-se diante da arca de Jeová. E ofereceu holocaustos, sacrifícios de comunhão e um banquete para todos os que o acompanhavam.

 

Duas prostitutas comparecerem diante do rei e disseram quem eram. Uma destas mulheres disse: "Meu senhor, tanto eu como esta que me acompanha moramos na mesma casa. Tive um filho. Três dias depois de ter dado à luz, também ela teve uma criança. Ninguém mais vive connosco. Estávamos sozinhas em casa. Algumas noites atrás, enquanto dormia, esta que me acompanha virou-se sobre o filho e sufocou-o até à morte. Apercebendo-se do que tinha feito, levantou-se, ainda noite dentro, pegou no meu filho e pô-lo a seu lado enquanto juntava o seu filho morto junto ao meu corpo. Ao acordar de manhã, querendo amamentar o meu filho, vi que estava morto. Olhando bem, contudo, vi que não era o filho que tinha dado à luz". A outra mulher, contudo, replicou: "É mentira! O meu filho vive. O que morreu foi o dela". Ao que a primeira contestou: "Não é verdade, o teu filho está morto, o meu está vivo", e entraram em altercação perante o rei. E o rei interrompeu-as: "Uma diz: 'o meu filho está vivo e o teu está morto' e a outra diz 'Mentira! o teu filho está morto e o meu está vivo'". E ordenou: "Tragam-me uma espada!". E trouxeram-lha. E o rei disse: "Cortai a criança em duas e dai metade a cada uma." A mãe da criança viva sentiu as entranhas a contorcerem-se de dor imediata e suplicou: "Meu senhor, dá a esta o menino inteiro e são, mas não o mates!". A outra, porém, foi clara dizendo "Não há-de ser teu nem meu. Dividam-no".  Ao que o rei sentenciou: "Dai a criança, viva, à primeira mulher. Não o mateis. É ela a sua mãe". E Israel soube deste julgamento. E Israel respeitou-o, pois viu que a sabedoria divina comandava a sua justiça.

Hoje, os reis (sejam monárquicos ou republicanos, perdoa-me lá, Luís Bonifácio, mas para mim venha o Diabo e escolha) não têm concentrado em si o poder judicial. Será bom, com certeza, que a justiça pertença às tábuas da mesma e não à mente de quem julga. Mas, quer queiramos quer não, passados cinco mil anos (só???), continuamos a precisar de alguém que, pensando como ser humano, cumpra as leis que por que os seres humanos anseiam. Em vez disso, temos tábuas insensíveis e meros executantes de algoritmos. A sabedoria matemática, porém, não resulta da simples aplicação das leis. Porém, não confiamos em ninguém. Todos são corruptos. Todos têm um preço. Todos se vendem. Todos têm mais que fazer que ouvir. Nem se pede que pensem muito. Apenas se pede que ouçam. Note-se no que Salomão pediu em primeiro lugar: discernimento para ouvir. Não pediu discernimento para julgar. Para ouvir. Ouvir. Eu sei que custa ouvir. Eu sei. Cortam-se-me as entranhas quando ouço alguns dos meus alunos, na sua infantil e manipulativa maldade, a tentarem convencer as minhas entranhas a responderem à afeição que não me dedicam. Custa ouvir. Por vezes é preciso ignorar o que se ouve, mas tal só se deve fazer depois de ouvir. Hoje, vejo-me entre um povo que diz hossana a um rei que não ouve, que foge pelas traseiras, que brande a espada da insensibilidade sobre as cabeças de quem se atreve a dizer que o que ele diz é mentira. O Shark dizia há dias que precisamos de um Salomão. Eu preciso apenas de alguém que ouça. E depois julgue, governe, faça. Mas ouça.

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publicado por Manuel Anastácio às 00:01
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Quarta-feira, 3 de Junho de 2009
À espera do tornado, de Gláucia Lemos.

 

 

Um dia ainda escreverei a história

de uma mulher que tinha um homem que a amava

e que um tornado levou.

Escreverei a história de quanto ela esperou.

Contarei como o vento arranhou a face de quem o viu

levando árvores, cães e telhados.

E contarei o caso de, dos homens, só levar os apaixonados.

O vazio no peito dos que não amaram nem amariam

Não compensava o peso dos seus membros estéreis e apagados.

Esses foram poupados.

Poupados ao olho voraz do vazio em que o homem que amava

aquela mulher lhe gritou

Espera por mim, minha amada,

Espera por mim. Um dia voltarei.

E contarei como as mulheres abandonadas

Seguiram, solitárias, pelas estradas, à procura.

E contarei, ó como contarei, enquanto os meus olhos conseguirem disfarçar as lágrimas,

como o rasto dos seus olhos se espalhava pelo chão,

pelo duro bordo dos trilhos, pelo vermelho dos frutos do café,

pelas ondas alvas do algodão

e pelo verde das folhas com que o milho se vestia.

Pudesse eu, e contaria, ó se contaria,

Como os olhos verdes das que tinham olhos verdes

se debotou enquanto o matagal  oculto deles se tingia.

Soubesse eu como fazê-lo, e contaria

Como se tornaram mais negras as noites,

Alimentando a sua escuridão com o negro dos olhos,

Das que tinham olhos negros e os viram tornar cinza,

apagando o seu negro brilho na ansiedade que perscruta as sombras.

Todas seguiram os caminhos da esperança desolada.

Todas, menos a mulher de quem contarei

As horas gastas nos trabalhos em que persistia,

Dia após dia, até ao momento em que, recolhida,

Junto à janela,

Novamente ouvia o vento em lamento melancólico e pirracento

Que quezilento, em lento protesto lhe repetia

Espera por mim, minha amada,

Espera por mim.

 

E, após o pedido, a promessa

Um dia voltarei.

E a mulher esperava, sob a areia prateada da noite,

sob a curva abóbada dos nocturnos violões

Tornados próximos pelo silencioso hálito de Deus, à noite,

Assim esperava a mulher de quem contarei

A espera, a esperança de que na dança dos elementos

Também houvesse o passo da restituição.

De quem contarei a bênção de acreditar

Que não há vento nem maldição que não devolva

O que seria de justiça não levar.

Contaria, ó como contaria,

Como trazia amarradas as dores do seu segredo sagrado.

Contaria, pudesse eu entender o que mais dizem os galhos das amendoeiras

Varados pelo vento,

No seu lamento ao ledo e triste alento

Da mulher que tinha um homem que a amava. E que, um dia, o vento levou.

E por quem ela esperaria,

Depois de esquecidos os sorrisos com que amarrara a dor aos dias,

Presa ao milagre adiado com que o vento, rendido, o devolveria.

 

 

Conto-poema de Gláucia Lemos publicado, inédito, na "Antologia Panorâmica do Conto Baiano - Século XX", com organização e introdução de Gerana Damulakis. Alterado, em termos formais apenas, por mim, em alguns pormenores, com a prévia autorização da autora.

Espero que não tenha deturpado muito a intenção original de um conto que já li vezes sem conta e que conto entre os mais belos poemas de amor que já li. A Gláucia, generosa como sempre, disse que, com este poema, estabelecíamos um "condomínio". Confesso que muito me orgulha o beneplácito de tal vizinha, a quem só não ofereço este poema, porque já é dela.

A Morte e a Donzela, de Schubert. Primeira parte do primeiro movimento. Quarteto Alban Berg. Hoje, o elemento multimédia veio no fim por razões que me parecem óbvias.

 

 

publicado por Manuel Anastácio às 00:01
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