Domingo, 31 de Maio de 2009
O Senhor, de Leopoldo Alas y Ureña (Clarín)

"Até os pombos vão para o Céu" (2007), de Samuel Torneux.

 

Imagine um conto... pronto, uma novela, em que um homem, tomado do Amor e Graça de Deus,  se apaixona por uma bela e desamparada menina. E que esse homem, já antes decidido a entregar-se à vida religiosa, e tendo já deixado, a contragosto, de lado a via das missões e do martírio por causa do amor maternal, recusa-se a encarar a paixão como pecado. Recusa-se até a tomá-la como Amor platónico. Mas, de forma absolutamente não canónica, deixa que a sua obsessão carnal se confunda com a própria religião e tome dela a sacralidade que o devolve, de forma insuspeita, ao martírio. Leopoldo Alas, conhecido por "Clarín", foi o escritor espanhol do século XIX que deu ao mundo essa maravilha erótico-teológica que abre o livro "El Señor y lo demás son cuentos" ("O Senhor e o resto são histórias", na versão portuguesa, da Teorema, na tradução de José Colaço Barreiros). Não é nenhum crime do Padre Amaro. O conto, apesar de não ser teologicamente canónico, em nada se afasta da ortodoxia católica, especialmente na erótica parte final em que Juan sai da alcova onde a amada acabou de receber "O Senhor" das suas mãos.

 

"Ao primeiro passo que deu na rua, Juan cambaleou, perdeu a visão e tombou por terra. Caiu sobre as pedras do passeio. Levantaram-no; recuperou os sentidos. O oleum infirmorum corria lentamente sobre a pedra polida. Juan, aterrado, pediu algodão, pediu lume; deitou-se de bruços, embebeu o algodão, queimou o líquido derramado, e enxugou a pedra o melhor que pôde. Enquanto se afadigava, de rosto contra a terra, a secar as pedras, as lágrimas corriam-lhe e caíam, misturando-se com o óleo vertido. Cessou o terror. No meio da sua tristeza infinita sentiu-se tranquilo, sem culpa. E uma voz profunda, muito profunda, enquanto ele trabalhava para evitar qualquer profanação, esfregando a a pedra manchada de óleo, dizia-lhe nas entranhas:

 

"Não querias o martírio por amor de Mim? Aqui o tens. O que importa se na Ásia ou aqui mesmo? A dor e Eu estão em toda a parte."

 

É das entranhas que Deus se dirige a Juan, porque é nas entranhas que se encontram o Céu e o Inferno, conforme ocupadas, ou não, pelo Senhor. E o resto são histórias.

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Sábado, 30 de Maio de 2009
Encontrado no baú (não sei para onde é que este texto ia, mas ia com certeza em direcção ao Inverno)

Excerto de "O meu vizinho Totoro" de Hayao Miyazaki

 

Folhas. O Outono são as folhas. O sol vai para a escola e empurra as andorinhas para longe. Tem de ter a secretária limpa para as folhas limpas dos cadernos e para o odor fresco a tipografia dos manuais. A Primavera é apenas a altura em que as árvores escrevem as histórias. No Verão, imprimem-se as cartilhas maternais. No Outono, o Sol começa a soletrar frases e a virar as páginas. Desleixado, e com hábitos um tanto ao quanto porcalhões, molha os dedos com saliva e vira-as devagar. Os caracóis deixam um rasto viscoso sobre os poemas escritos pela luz. O sol não sabe, mas foi ele mesmo quem escreveu aquilo que agora não consegue decifrar.

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Sexta-feira, 29 de Maio de 2009
Curta 42

Lindo.  Uma coisa que gostaria de escrever.

 

E sobre a qual gostaria de ver o Tomás Vasques a escrever.

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Quarta-feira, 27 de Maio de 2009
Buscas pedidas: "É mentira, é mentira, é mentira sim senhor"

Teresa Żylis-Gara e Franco Corelli, no Già nella notte densa do "Otello" de Verdi. Porque me apetece. Ou talvez seja uma associação entre a tez de Otello e a das azeitonas... sabe-se lá...

 

 Alguém caiu de novo no meu blogue à procura de uma letra do Tony Carreira. Por incrível que pareça, encontrou-a. E disse que o meu blogue já tinha servido para alguma coisa. Valha-nos isso. E pediu: já agora podias dar a letra do "É mentira, é mentira, é mentira sim Senhor"? Claro, sempre às ordens. A canção, de melhor valor poético que uma letra do Paulo Coelho, perdão, do Tony Carreira, não tem o título indicado pelo meu leitor casual e que provavelmente não aqui voltará à procura dela, mas aquele que agora apresento a negrito. Por hoje é tudo. Tenho três livros a pedirem palavras minhas por aqui e ainda não li nenhum. Ide às azeitonas e ponde uma, acabada de apanhar, na boca. Acreditavam os meus colegas de escola que após algum tempo apareceria gravada na casca a inicial da pessoa amada. Ide. Fazei. Lede. Se vos aprouver.

 

A Azeitona já está preta

A azeitona já está preta, a azeitona já está preta,
Já se pode armar aos tordos, já se pode armar aos tordos
Diz-me linda rapariga, diz-me linda rapariga,
Como vais de amores novos, como vais de amores novos.

É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!
É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!

Ai que lindo chapéu preto, ai que lindo chapéu preto
Naquela cabeça vai, naquela cabeça vai...
Ai que lindo rapazinho, ai que lindo rapazinho
Para genro do meu pai, para genro do meu pai...

É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!
É mentira, é mentira
É mentira, sim senhor
Eu nunca pedi um beijo
Quem mo deu foi meu amor!!!

Quem me dera ser colete, Quem me dera ser colete,
Quem me dera ser botão, Quem me dera ser botão,
Para andar agarradinha, Para andar agarradinha,
Juntinha ao teu coração... Juntinha ao teu coração...

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Terça-feira, 26 de Maio de 2009
Um murro no estômago é como a lua a fazer caretas aos louva-a-deus

O túnel de vento de Totoro, de Joe Hisaishi (da banda sonora de "O meu vizinho Totoro)

 

A Anabela Lopes (autora de "Lua: A Princesa da Floresta Dourada", a quem estendo de bom grado o cachimbo da paz) passou por aqui e apanhou com o meu texto de ontem que... pronto, era um pouco violentozito. Mas eu tenho esse péssimo hábito de bater forte e feio em quem gosta de uma coisa tão sensaborona e deslavada como Paulo Coelho e de coisas tão adocicadas e enjoativas como da Danielle Steel. Mas vamos por partes: não é errado gostar de Paulo Coelho nem de Danielle Steell. Nesse sentido, gostos não se discutem. Mas os gostos podem-se discutir, e devem ser discutidos, porque é isso que torna a literatura, enquanto fenómeno social, divertida. Claro que não vou ler Paulo Coelho quando tenho tantos autores que me conseguiriam encher a alma e com tantos títulos à espera de serem lidos por mim: Torga, Bellow, Szymborska, Tolstoi, ui... Ler Paulo Coelho é, acima de tudo - para mim - um enorme desperdício de tempo e de vida. Mas isso é para mim. A Anabela (tal como grande parte dos meus colegas de profissão) gosta de Paulo Coelho. Ora, está entre a grande fatia da humanidade que torna este o escritor lusófono mais vendido de todos os tempos. O que - quanto a mim - é uma injustiça, mas eu não tenho nada que dizer sobre a justiça do que as pessoas gostam de ler. Ler é como fazer amigos - corrijo, é fazer amigos - e a maior parte das pessoas prefere amigos de fachada a amigos verdadeiros. Os amigos verdadeiros não são aqueles que dizem aquilo que queremos ouvir, mas aquilo que nos transforma, por dentro, em pessoas melhores (olha, assim até pareço o Paulo Coelho, ehehe). O que significa que, por vezes,  descobrimos que os nossos melhores amigos são aqueles que sempre julgámos que nos detestavam (olha eu a fazer de Paulo Coelho outra vez - bem diz o outro que os coelhos são piores que as moscas a reproduzirem-se). Um dia, reescrevi aqui no meu blogue um poema muito chunga ao estilo do Paulo Coelho (e a Gerana bateu, logo, certeira aqui no pobre do moço) que, a certa altura, dizia que o Amor é a mais escura via de comunicação. E é. O Paulo Coelho não escreve muitos disparates (escreve alguns, e de palmatória). Escreverá, com certeza, coisas acertadas. Coisas que parecem profundas. Mas há uma diferença entre a profundidade de uma gruta escavada pelo tempo e pelas águas e a profundidade aberta com a força bruta de uma broca. Paulo Coelho é uma broca. Mas avancemos: a Anabela apanhou um murro no estômago com as minhas palavras. Confesso que não era essa a minha intenção.

 

A Anabela diz que está a dar os seus primeiros passos na literatura... Eu discordo. Os primeiros passos na literatura são dados quando aprendemos a ler. E a Anabela (sei eu, que a ouvi) aprendeu a amar a leitura desde cedo. Isso é bonito. Mas quando diz que eu a julgo, já terei que concordar e discordar. É verdade e não-verdade. Eu julgo as pessoas por aquilo que lêem. Julgo-as enquanto leitoras, não enquanto pessoas. Fui tendo (e tenho) amigos que lêem Paulo Coelho e que sabem  que eu lhes reprovo tal gosto. Adoraria que eles chegassem ao pé de mim e dissessem: olha, hoje abri um livro do Coelho e apercebi-me de que aquilo é um hambúrguer do MacDonald's. O pior é que as pessoas gostam de hambúrgueres do MacDonald's (pronto, ou do BurgerKing, é-me indiferente). Eu julgo, sim, a Anabela por ler Paulo Coelho e por ler Danielle Steell. Não a estou a julgar como pessoa, mas como leitora (e, inevitavelmente, como escritora). Eu tenho que ter alguma razão para pegar num livro, já que tenho tantos à espera de serem lidos. Se eu tivesse todo o tempo do mundo, começava por ler Corín Tellado, mas eu não tenho todo o tempo do mundo. Por isso, e como sei que posso morrer amanhã ou daqui a um minuto, prefiro ler autores que me digam coisas que valham a pena. Ora, se o Paulo Coelho apenas diz coisas vazias disfarçadas de coisas profundas e plenas de significado (ai as vezes em que já vi pessoas adoráveis a ler excertos do Paulo Coelho com a lágrima ao canto do olho, à espera que eu ficasse também de lágrima no canto do olho... e apenas viram o meu ar snob e enjoado - não sou capaz de fingir adoração por coisas medíocres e mercenárias), o que é que a Anabela espera, que eu creia que gostarei de ler o "Lua"? Acredita que, se calhar, até vou gostar de o ler (que, agora, vou ler mesmo...), mas o cartão de visita não é muito convidativo. Eu tenho de julgar as coisas de acordo com aquilo que conheço delas. E tal julgamento não vai pôr ninguém na prisão, por isso, fico descansado.

 

A Anabela também lê autores "conceituados" como Eça de Queirós e José Saramago. Não sei bem o que seja isso de autores conceituados. Para mim, Eça e Saramago são dois escritores maiores. Se a Anabela os lê, ainda bem. Quem ganha, em primeiro lugar, é a própria Anabela, mas nestas coisas do gostar, fica-me sempre o travo amargo do Paulo Coelho... A Anabela diz ainda que é errado julgá-la como escritora pelo facto de gostar de ler Coelho e Steel, até porque eles não a influenciaram... Isso parece-me estranho. Os nossos escritores preferidos deviam ser aqueles que mais fortemente nos deveriam influenciar, fosse lá de que maneira fosse (nem que fosse pela via de não os querermos imitar). Não é errado ter uma ideia pré-concebida de um autor a partir dos livros que ele lê. Isso nem sequer é julgar! Um julgamento só pode vir depois das provas, e eu não as tenho porque não li o livro! Mas posso fazer uma aposta. Fazemos todos os dias apostas quando compramos um livro porque gostamos da capa ou do título ou porque aquela senhora com aspecto fino disse que o livro não presta (e nós, em espírito de contradição, vamos a correr a comprá-lo). Há sempre uma razão para pegarmos num livro antes de outro. Ouvir o autor a dizer que o seu autor preferido é o Paulo Coelho não me motiva a lê-lo. Se a Anabela tivesse dito J. K. Rowling, estaria já neste momento com o livro, autografado, na minha mesa de cabeceira.

 

Quanto ao murro no estômago: Anabela, eu não vou ser mais suave nas palavras a respeito de um escritor por ele ser jovem. Eu escrevi algo sobre uma impressão que tive. E, ainda por cima, incentivei as pessoas a demonstrarem-me o contrário, isto é, que o livro é bom apesar do meu preconceito. Repara que eu até me assumi como preconceituoso. Sim, tenho preconceito contra perfumes demasiado enjoativos. Tenho preconceito contra o sabor da papaia demasiado madura. E há mal nisso em dizê-lo num blogue público? Não, não há. A Anabela não pretende agradar a todos. E faz a Anabela muito bem, porque nunca o conseguirá. Mas não posso concordar quando diz que é de mau gosto eu manifestar-me aqui. Eu não falei com a Anabela pessoalmente, porque estava a trabalhar e não podia estar na amena cavaqueira. Mas é meu direito, enquanto leitor, e enquanto cidadão, pronunciar-me a respeito de questões estéticas. Se eu disser aqui que não gosto do Paulo Portas, nem do Sócrates (e não gosto nem de um nem de outro), eles não me vão aparecer aqui amanhã a dizer que eu devia ter falado com eles antes... É verdade que eles se estão nas tintas para a minha pequena pessoa, mas essa não é a questão: a Anabela fez uma coisa maravilhosa que foi escrever e editar um livro. Eu posso não ter gostado de a ouvir a citar tais nomes como escritores preferidos, estou nesse direito. E estou no meu direito de dizer e contar, e criticar, aquilo que ouvi num espaço público. Aceite o meu convite para o debate, defenda o Paulo Coelho e a Steel se assim entender, mas não fique magoada. Seja forte e não se deixe incomodar por palavras críticas. A Anabela diz que, em conversa à parte, teria oportunidade de se defender. A Anabela não precisa de se defender. Precisa apenas de aceitar o debate.

 

Vou terminar com mais um conselho que, vou ser sincero, não sei se é à Paulo Coelho ou não. Seria o conselho que daria a uma filha minha que estivesse na sua situação, perante um professorzeco que a estivesse a criticar pelos seus gostos e pela sua forma de escrever: Anabela, não tens que julgar que o murro no estômago te tornará mais forte. Não. Um murro no estômago é sempre uma violência que nos desarranja por dentro. Tenta, por outro lado, ver se este professor, que não conheces de lado algum, te queria dar, de facto, um murro no estômago. Acredita que não. Não precisas de concordar comigo. Não precisas de deixar os teus autores favoritos de lado. Não precisas de dizer que afinal gostas é de este ou daquele escritor. Não. Tens sempre de ser fiel a ti mesma e à tua razão. E sermos fiéis a nós mesmos inclui evoluirmos, darmos o braço a torcer. Ouvirmos os outros e aprendermos com os outros. Não devemos, jamais, aceitar murros no estômago. Deves, antes, pelo contrário, ignorar aquilo que for dirigido para ti na forma de ataque pessoal (assim, o murro passa ao lado) e aprender algo com a visão dos outros. Podes até nem concordar com aquele crítico, nem terás de concordar: o importante é que tentes ver o que ele quer dizer. E, depois, aproveita aquilo que te ficar entre as mãos. O PC lá disse algures que  “O bom combate é aquele que é travado em nome de nossos sonhos." É uma frase vazia. Não quer dizer nada. Por isso, cabe lá tudo. Eu ponho lá isto: que enquanto for vivo, estou aqui para discutir. Foi por isso que incentivei os meus alunos a lerem o teu livro (até porque tenho a certeza que terão ainda mais curiosidade em lê-lo depois de saberem que reprovo os teus gostos literários de eleição): para que eles leiam e o possam defender (ou o contrário). Para que eles o possam discutir. Porque para mim, os gostos discutem-se. Não servem eles para outra coisa. O bom combate não é aquele que é travado em nome de nossos sonhos - é aquele que é travado sem que ninguém perca a vida e sem que ninguém leve murros no estômago, é o combate em que todos ficam a ganhar. Espero que a Anabela escreva os seus quatro livros (que, estando eu vivo, os lerei aos quatro, e cá estarei para os comentar) e que continue a usar e a abusar do "cor-de-rosa brilhante". Não prometo que vá gostar. Mas prometo que serei sincero na minha avaliação. Sem murros. Espero que a Anabela faça o mesmo e aceite o combate.

 

As melhores felicidades. A sério.

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publicado por Manuel Anastácio às 21:31
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