Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2009
A Túlipa Negra, de Alexandre Dumas (onde não se fala da Túlipa Negra, de Alexandre Dumas)

Rouxinol Faduncho, "Dartacão e os Três Moscãoteiros"

 

A Gerana pede-me um comentário a "A Túlipa Negra" de Alexandre Dumas. E fico tentado a desenvolver o tema como se tivesse conhecimento de causa, recorrendo a algumas generalidades sobre o autor. Poderia falar do enredo. Falar de Dumas é falar de enredo. Foi graças ao enredo de "O Conde de Monte Cristo" que encontrei "As Conversas" ("Causeries") deste autor e que, tanto quanto sei, jamais foram traduzidas e publicadas em português. Por isso decidi começar a fazê-lo. A tradução do quarto soneto de "Cristo no Monte das Oliveiras" de Nerval não se dá muito bem com o inverno húmido e gelado que agora mesmo ouço a correr como louco pela ribeira abaixo, escavando as raízes dos choupos-negros no jardim público que ombreia a minha casa. Deveria dar-se bem. Mas não dá. As referências ao frio e o cenário bíblico podem ter pontos em contacto com a inspiração nua das ávores, mas a metafísica de Nerval precisa de clima mediterrânico. E o clima anda, aqui, a variar entre o continental e o atlântico. Alexandre Dumas e prosa parecem-me melhor opção, para alguém, como eu, que gosta de ir exercitando o seu francês. Melhor, se tivesse tempo de levar tal tarefa a cabo. Duvido. Mas não interessa.

 

Vamos aos factos: eu só li, de Alexandre Dumas, "Os Três Mosqueteiros" e o primeiro volume de um romance chamado "Ascanio", onde Benvenuto Cellini é transformado em figura pitoresca de romance de capa e espada, se não me falha a memória. Só o primeiro volume. A pessoa que mo emprestou, em Mértola, não tinha o segundo volume. Bons tempos esses, em que se desperdiçava o tempo a ler livros incompletos de Alexandre Dumas quando tinha Elias Canetti e Gonzalo Torrente Ballester na estante a acumular mosquitos mortos (coisa fácil, em Mértola).

 

Só li estes, do Pai, que do Filho, li e reli a "Dama das Camélias" e se, agora, não o pretendo ler de novo é para não ter a desilusão de achar o livro vulgar, agora que tenho referências que não tinha quando, à noite, entre a serradura e o cheiro a azedo das barracas para operários da má construção civil do Entroncamento, chorei com a morte de Marguerite e fui assaltado com sonhos do seu belo e terrível cadáver abraçado a Armand.

 

Nunca li, sequer, "O Conde de Monte Cristo". O que sei, sei da Banda Desenhada, dos filmes, dos desenhos animados. É destas referências que conheço a Túlipa Negra. Sei bem que nada substitui a leitura de um livro. Cada coisa é uma coisa e um livro é um livro, intraduzível para qualquer outro suporte que não seja o do campo puramente verbal. Mas há algo de sagrado nestas "Bíblias dos Pobres" que constituem as adaptações fast-food da grande literatura. A Gerana dizia, a respeito de uma adaptação televisiva do "Dom Casmurro": "viver a grandiosidade de Machado é ler e reler e reler o Bruxo do Cosme Velho". Da mesma forma, se Dumas foi grande (e foi-o, com certeza, mesmo que dele sejam parcas as minhas leituras), a sua grandiosidade só poderá ser avaliada pela sua leitura... Mas, independentemente dessa avaliação, a sua grandiosidade está disseminada no imaginário de mihões de pessoas que nunca o leram... Inclusive no meu.

 

...E isso levava-me, agora, ao "Slumdog Millionaire". Mas não sou como o Alexandre Dumas. Não vivo do que escrevo.

 

Continuo a ouvir lá fora o ribeiro. E não falei na Túlipa Negra. Quando me reformar, eu falo.

publicado por Manuel Anastácio às 00:18
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Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2009
Bibliomancia

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Um parvalhão qualquer roubou-me o nome e está a fazer-se passar por astrólogo. Haja paciência. De entre tantos nomes, tinha logo que ir buscar o meu. E, ainda por cima, parece que me anda a surripiar livros da estante. Tenho de comprar umas ratoeiras.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:44
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Domingo, 25 de Janeiro de 2009
Azuis, negras e amarelo

 

Diz Miguel Torga que a Natureza se recusou a pôr luto nas flores. Por isso não há flores negras. Poderão ser escuras, mas nunca negras. O homem, contudo, vive de e para as quimeras. Por isso criou, através da seleção artificial, das rosas com cinco pétalas, as mais belas aberrações genéticas que os amantes oferecem e que os crentes depositam aos pés da Virgem. Por isso procura destilar nas pétalas a cor impossível. Túlipas negras, como a de Alexandre Dumas que, como alguns mais atentos leitores já repararam, me tem feito alguma companhia ultimamente. Rosas azuis. A Gerana diz-me, contudo, que há rosas azuis no Peru, e o dogma em que professo vacila. Rosas azuis? As rosas, dizem-me os caros botânicos e geneticistas, não conseguem, de modo algum, produzir pigmentos azuis. Com sorte, micro ondulações na superfície das pétalas poderiam dar a ilusão da cor azul, num fenómeno semelhante ao que ocorre nas bolhas de sabão ou nas cascas pretas de quitina de alguns insectos que, graças aos padrões de relevo microscópico do seu revestimento, decantam a luz em tons azuis, ou outros: o que permite, copiando a natureza, criar tecidos coloridos sem tinta. Mas rosas azuis? Naturalmente, os senhores floristas, cientistas e botânico-frankensteinistas são unânimes: não há. E começaram a transplantar genes de petúnias ou da flor do anil-do-campo ou Indigofera tinctoria, a partir da qual se produzia, originalmente, o azul das calças de ganga, hoje produzido sinteticamente. Planta da família das leguminosas a que também pertencem os tremoceiros, por vezes azuis, como fez notar o Silvério Sagueiro em comentário ao artigo anterior. Na verdade, até esta planta tintureira não tem as flores realmente azuis, mas arroxeadas ou cor-de-rosa. O azul produz-se, não a partir das flores, mas das folhas após fermentação.

 

 

Outros técnicos procuram ainda obter pétalas azuis a partir de enzimas humanas como as que, presentes no fígado de Jorge III de Inglaterra, lhe criaram depósitos de azul indigo na urina na altura da sua demência. A informação que tenho é que o mais azulado que se conseguiu, em variedades de rosas batizadas com nomes como "Blue Girl", "Bleu Magenta" e "Blue Moon" não é mais que roxo. Assim como as túlipas mais negras que se conseguiram não são mais que azul escuro e púrpura, as mais negras das cores não negras.

 

 

Seja como for, por aqui, o tempo ainda não é de flores azuis, mas amarelas. Das invasoras acácias que já espreitam, como cancros, deslumbrantes para quem desconhece a sua voracidade violenta, pelas encostas do Minho, a anunciar o Entrudo português. Por aqui vejo poucas daquelas flores azedas que os meus colegas de infância por esta altura iam chupando a caminho da escola. Os trevos-azedos, erva-do-vinagre ou erva-ruim - que não convém às ovelhas delas abusarem. Nome científico, Oxalis pes-caprae ou Oxalis-pé-de-cabra em alusão ao ácido oxálico (que lhe dá o sabor azedo) e aos bolbos, nas raízes, que se assemelham a pés de caprinos.

 

 

Flores amarelas que, imitando a cor do sol, como ele renascem a partir do solstício.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 23:37
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Buscas pedidas: "Flor de Miosótis'"

Naquelas associações que aprendemos a papaguear na escola a respeito das cores, há uma associação frequente entre o azul e os miosótis. Se pedirem a alguém para dizer o nome de uma flor amarela, branca ou vermelha, os nomes variarão, embora, mais tarde ou mais cedo alguém pense em rosas. Mas, se pedirem o nome de uma flor azul, a escolha recairá quase invariavelmente nos miosótis. Mas poucas pessoas reconhecem os miosótis. Eu mesmo, que julgava que os sabia identificar, segui um longo caminho até os saber reconhecer. Todos começamos por aprender que são flores azuis. Não rosas.

 

 

As rosas azuis são sempre rosas brancas coloridas artificialmente, pondo corante azul na água que subirá pelos seus vasos condutores, por capilaridade. Qualquer pessoa o pode fazer. Mas há mais flores azuis. A da chicória-do-café, ou almeirões, por exemplo. Planta muito apreciada para saladas, em casa dos meus pais, misturada com batata cozida para suavizar o amargo da erva.

 

 

Outra flor azul, que em nada se relaciona com os miosótis para além da sua cor, são as chamadas viúvas (Trachelium caeruleum). Flor que é muito frequente nos muros que sobem em direção ao Bom Jesus de Braga, mas que, um dia, encontrei na minha terra natal, junto à Cruz Carril, lugar de fantasmas e bruxaria. Desconhecendo eu tal flor - que nunca mais por lá vi, julguei, nessa altura, que fossem estes os miosótis.

 

 

Mas não. Os miosótis têm as flores dispostas em espigas e não em umbela. Têm uma corola composta por cinco pétalas azuis. Mas isso não basta para ser miosótis. Como no caso dos olhos-de-gato (Pentaglottis sempervirens).

 

 

Ou no caso das flores de algumas espécies do género Omphalodes, como uma a que os ingleses chamam de Maria-de-olhos-azuis ou, ainda, miosótis-rastejantes, apesar de não serem verdadeiros miosótis.

 

 

Esses, os verdadeiros, pertencem ao género Myosotis., que inclui cerca de cinquenta espécies, como o miosótis-de-água (Myosotis palustris).

 

 

Ou o miosótis-do-campo (Myosotis arvensis) que, como muitos outros, podem até não ser azuis.

 

 

 Aliás, a flor de miosótis costuma distinguir-se dos falsos miosótis dos géneros Pentaglottis e Omphalodes pelo seu centro amarelo aureolado de branco, sobre fundo de pétalas azuis, enquanto que estes géneros costumam ter centros brancos. Mas se isso é verdade para os Pentaglottis sempervirens (Cinco-línguas sempre verde), já não o é para algumas espécies de Omphalodes, como o Omphalodes scorpioides.

 

 

Haverá, com certeza, alguma vantagem evolutiva nesta forma floral para que se repita, de forma convergente em tantas espécies geneticamente desavindas. O mesmo se passa, aliás, com o padrão de amarelo aureolado de branco sobre o azul pentapartido. Ouro sobre azul. Nunca entendi bem a origem da expressão. A Natureza parece que sim.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 01:19
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Terça-feira, 20 de Janeiro de 2009
Buscas pedidas: O Bem e o Mal nos Contos de Fadas

"Fairytale" ("Shrek"), música de Harry Gregson-Williams, interpretada por Joseph M. Rozell.

 

A escrita para crianças deve focar, a nível da sua construção narrativa, as questões mais difíceis de entender ou de explicar por parte dos adultos. E deve fazer isso usando imagens que, por vezes, são particularmente cruéis, outras vezes oniricamente falsas e, muitas vezes assentes nos mais básicos estereótipos que, aqui, servem de símbolos a que não se deve retirar a sua força, a pretexto de não querer traumatizar os meninos. De nada nos serve querermos inculcar nas crianças mais jovens valores de tolerância relativista. O quadro mental inicial de uma criança é puramente maniqueísta e resume-se ao que é bom e ao que é mau. A pedagogia que subjaz, contudo, à maioria dos textos recentes para crianças aponta exactamente para o arredondar das arestas cortantes dos contos de antigamente. Para a proteção de um suposto mundo imaculado onde vive a criança. Isso é mau. Nascemos geneticamente preparados para enfentarmos a violência da nossa condição animal e humana, até porque nascemos já capazes das maiores violências sobre os outros, e é a educação que, gradualmente nos vai inserindo num pacto social de concórdia e tolerância. Não defendo, é certo, a violência como meio educativo (reguadas, vergastadas e bater com o cinto) - mas é um facto que a criança exige resoluções violentas para as suas angústias. A madrasta má deve sofrer de um fim mais sádico que aquele que a justiça deveria reclamar. Eram assim as histórias originais dos Irmãos Grimm. Hoje, a Gata Borralheira, mui cristãmente, perdoa à madrasta. Isso estará correto, com certeza, do ponto de vista de um adulto ou de uma criança já a caminho da pré-adolescência, mas é um erro que, por extensão, se julgue que também deve ser assim para quem o mundo é apenas uma sucessão de situações fantasmagóricas. É nesta fase que se deve apelar aos conceitos de bem e mal. É aqui que radicam todos os valores que a criança mais tarde desenvolverá. Usando a nomenclatura de Kieran Egan, ao modo somático de entender as coisas (dá prazer / dá dor) segue-se esta fase, o modo mítico de compreensão do Universo. Só depois se entra progressivamente na compreensão da realidade como coisa complexa, com os estádios romântico (em que se apreende a diversidade), filosófico e, finalmente, irónico (estádio a que já chegou a Manuela Ferreira Leite, mas não o comum dos portugueses). Como na velhinha teoria da recapitulação, que postulava que o embrião passava por todas as formas biológicas da sua árvore filogenética, e que sendo uma teoria refutada não deixa de ser útil para o nosso entendimento, também Egan postula que as nossas necessidades educativas passam por estádios que correspondem à evolução histórica da humanidade ou, pelo menos, da história das suas ideias (sempre no sentido da compreensão da complexidade dos fenómenos humanos). Ora, isso coloca alguns problemas interessantes: é lícito continuar a dizer que o mau era o lobo? Ou que o mau era muito feio, e que a bruxa tinha uma verruga no nariz? Ou que as personagens boazinhas são sempre bonitas? A minha opinião é: não, não é necessário, no caso das características dos seres humanos que não se prendem diretamente à sua bondade ou à sua maldade. Nestes casos é conveniente escreverem-se histórias em que os bons sejam feios (o caso do Shrek, no cinema, é um exemplo muito louvável, nesse sentido) ou em que as madrastas sejam boas ou, mesmo, que as madrinhas sejam más. O que importa, no que ao ser humano diz respeito, sempre, é a dicotomia bem / mal. Mas será sempre necessário apelar ao simbolismo dos elementos narrativos que devem ser facilmente reconhecidos como bons ou maus. É aqui que a fábula aparece como excelente meio de compromisso entre as necessidades de compreensão da criança e os pruridos do politicamente correto. O lobo pode perfeitamente ser exemplo de crueldade. Os valores ecológicos de preservação da biodiversidade não serão postos em causa pelo seu papel simbólico. Basta que as crianças não terminem a sua evolução no estádio mítico. Infelizmente, muitas terminam. E algumas até chegam a lugares cimeiros da administração pública.

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publicado por Manuel Anastácio às 20:00
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