Quarta-feira, 31 de Dezembro de 2008
Fábulas de Esopo: O homem e a serpente

Excerto de "A Sagração da Primavera" de Stravinsky, Pina Bausch, Wuppertal Tanztheater

Por azar, em acidente,
O filho de um fazendeiro
Tropeçou numa serpente,
Que dando troco certeiro
O mordeu até matar.
O pai, feito justiceiro,
Em raiva a foi procurar
E munido de um machado
P'la cauda se fez cobrar,
Deixando o bicho amputado.
A serpente, enraivecida,
Virou-se-lhe contra o gado
Causando-lhe, de vencida,
Um enorme prejuízo.
Com a esperança perdida,
Perante um fim indeciso,
Pensou este lavrador
Fazer o que era preciso.
À toca do predador
Foi levar pãozinho e mel
E disse, apaziguador:
"Minha cara cascavel,
Creio que chegou a hora
De, enfim, pedir quartel.
Que sentido tem agora
Manter esta divergência?
É viúva a minha nora
Pela tua violência,
E mortos os animais
Que me davam subsistência.
Que podes tu querer mais
Que não te console já?"
E foi com palavras tais
Que apelou à bicha má
Contra o orgulho ferido.
"A mim tanto se me dá"
Disse o verme enraivecido
"Que me venhas com presentes,
Que não nos é concedido
Ignorar que estão ausentes,
Para sempre, a cauda minha,
Primo orgulho das serpentes,
E o que já não acarinha
Tua parental esperança."
A moral já se adivinha
Desta dança e contradança:
É possível perdoar,
Mas jamais a confiança
Se fará do olvidar.

 

(versão de Manuel Anastácio)

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 06:00
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (1) | Adicionar aos favoritos
Terça-feira, 30 de Dezembro de 2008
Aviso aos poucos que deixam comentários

Nos próximos dias, o blogue actualizar-se-á automaticamente. O facto de aparecerem novos posts não quererá dizer que esteja presente para responder a comentários.

 

Por isso, antes de mais, um feliz ano novo para todos.

publicado por Manuel Anastácio às 15:48
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (4) | Adicionar aos favoritos
O Messias

Händel: For unto us a child is born & Glory to God (O Messias): Árias para Coro (The Choir Cantillation & The New Baroque Ensemble) dirigidas por Antony Walke. Sara Macliver como soprano. Por recomendação do Vítor I, do Abaixo de Cão.

 

Corre o ano de 1741. Sobre um morro que se debruça sobre um lago artificial, George Frideric Handel sente a cabeça a latejar com notas de puro amor entrelaçadas ao mais puro cinismo da bíblica poesia que deveria inspirar um sexagenário habituado aos favores de uma alta sociedade que agora o ignorava. Está no centro de um octógono em estilo paladiano, formando o que se chama de templo de jardim. Na outra margem do lago ergue-se o peristilo de seis colunas da mansão georgiana de Gopsall Hall. Mais dois séculos e uma década passarão e nada restará daquele Paraíso a não ser as bases das colunas que agora rodeiam Handel. A primeira coisa a cair, menos de um século após este Verão de inconstantes humores, será a cúpula que agora cobre o compositor que vacila entre as dores do corpo e a quase inconsciência produtiva da mão que entrega tudo o que pode aos versos que o melancólico dono dos jardins surripiou à Bíblia.

 

Cada vale será erguido, cada monte, cada outeiro, abatido; o terreno sulcado, nivelado e o escabroso, aplanado. Isaías 40, 4

 

Gopsall Hall, Pieter Tillemans, primeira metade do século XVIII, Paul Mellon Centre for studies in British Art.

 

Sobre a cúpula, ergue-se uma estátua representando a Religião, escupida por Louis François Roubiliac, que mais tarde esculpirá a última pedra a cobrir o corpo do compositor, na Abadia de Westminster. Jennens, o autor do libretto que ocupa a mente de Handel, é um non-juror. Um dos que se recusaram a prestar juramento de lealdade a Jorge I, inaugurador, protestante, da linha real de Hanôver. Jennens, neto de um magnata das minas de ferro, é particularmente obcecado pela ideia de um cristianismo primitivo, de longe mais puro que o cristianismo contemporâneo, mas, tal como o jovem rico do capítulo XIX do Evangelho de São Mateus, não deixa os bens terrenos em mãos alheias, adornando as suas posses com tesouros de lavra humana. Tenho para mim que, graças a Deus, em tais séculos, não havendo em que gastar os lucros excessivos, as grandes famílias recorriam aos artistas para escoar o dinheiro que não conseguiam empregar noutro sítio. Não fosse assim e o espólio cultural que hoje temos à disposição seria de uma aridez constrangedora. Certo é que, ao passar junto às pedras lavradas que tanto amo, tantas vezes me ocorre pensar nas vidas que foi necessário sacrificar às trevas da fome e da ignorância para que se erigissem o portal das Capelas Imperfeitas ou um simples capitel românico da Igreja de Fontarcada. Cada pormenor que agora me deslumbra traz em si o eco escarlate do sangue e o brilho nacarado da indiferença.

 

Porque para nós nasceu um menino, um filho nos foi dado; sobre os seus ombros recairá o governo, e chamar-se-á Maravilhoso, Conselheiro, Deus Todo Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Isaías 9, 6

 

Estátua à Religião de Louis François Roubiliac, Belgrave Hall Museum, Leicester City Council

 

Corre o ano de 1741.Handel talvez nunca tenha estado naquele morro, junto àquele lago, no centro do octógono pagão convertido à geometria sagrada cristã dos templários, de San Vitale de Ravena,da Charola do Convento de Cristo, da Capela de Carlos Magno e do Santo Sepulcro em Jerusalém. Nem sei se a brisa lacustre dos jardins alguma vez poderia inspirar os movimentos sagrados do nascimento, da transformação e da exaltação. Adão e Eva nada sabiam da sua sacra condição quando ingenuamente seguiam por entre as árvores e os arbustos de uma eternidade adiada. Sei que o oratório "Messias", tenha sido ele escrito entre colunas e vegetação ou entre quatro paredes mal caiadas, é mais que um hino à religião e à triste ideia da necessidade de um Messias sobre cujos ombros recaia o governo de uma espécie ingovernável. É um Hino à brisa da tarde e às transformações íntimas da Natureza. Um Hino à circularidade do tempo. Um Hino à perfeita forma de Deus, que não residindo no Homem, por ele é constantemente contemplada. A forma octogonal do eterno desejo da perfeição.


 

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 05:00
link do post | Dizer de sua justiça | Adicionar aos favoritos
Segunda-feira, 29 de Dezembro de 2008
Buscas pedidas: Restaurantes em Brufe

Excerto de "A Festa de Babette", de Gabriel Axel.

 

Um dos tipos de Curral de Moinas disse, num Jornal da TV2 Telejornal de Fim de Semana, no Canal 1, que gostava do Restaurante "O Escondidinho" numa terreola do Gerês, chamada Brufe. Há conta disso tive gente à procura do dito no meu blogue.

 

É mentira. Ou melhor, foi descuido. Não há nenhum "Escondidinho" em Brufe. Há, sim, "O Abocanhado". Convém reservar (é só ir ao link). A paisagem é magnífica e estende-se sobre o vale de socalcos do Rio Homem e os cumes da Serra da Amarela pontuados de milheiros de granito rodeados de couves galegas, maciços de giesta e carvalhos. Se gostarem de dar ao pé, podem ainda chegar um pouco mais cedo e fazer um dos percursos pedestres marcados e homologados pela Federação Portuguesa de Campismo e Montanhismo, antes de, com os apetites que só os penhascos são capazes de dar, se atirarem que nem alarves aos enchidos, aos rojões, ao javali com arroz de carqueja, aos garnizés, ao cabrito, ao veado, à carne barrosã ou aos ossos à Lavrador. Tudo para carnívoros sem pruridos vegetarianos na consciência. Falo eu, carnívoro impenitente.

Artigos da mesma série: ,
publicado por Manuel Anastácio às 04:10
link do post | Dizer de sua justiça | Quem disse o que pensou (4) | Adicionar aos favoritos
Domingo, 28 de Dezembro de 2008
Este ano foi cocó

Fezes de coelho, Santa Maria de Airão, São Pedro de Oliveira, Guisande ou coisa que o valha, Dezembro de 2008

 

Sucessão e engano é a rotina do relógio. O ano não surge menos vão que a vã história. Di-lo Borges, no artigo anterior.

 

Os Gato Fedorento começaram o ano com os portugueses a cantarem "este fim de ano... foi uma merda... foi cocó...". Mas se há coisa que prezo são as fezes, tão maltratadas pela nossa cultura cropófoba. Os hindus, mantendo um dos traços distintivos de uma suposta cultura-mãe hindo-europeia, veneram as vacas como fonte de vida e alimento, não só por causa do leite que produzem, mas também pela bosta. É a bosta que fertiliza os campos. A bosta ainda em decomposição, graças à acção das bactérias que lhe dá o cheiro, irradia calor que pode ser utilizado para vários efeitos, inclusive para aquecer a cama de muitos seres humanos por esse mundo fora. Seca, serve de combustível (de facto, é composta principalmente por celulose, madeira, portanto). Pode ser utilizada como cimento na produção de tijolo de adobe. É ainda utilizada por muita boa velhinha na selagem do forno enquanto se faz o pão rústico dos nossos sonhos de Inverno. E há até uma terrinha em Portugal onde é a bosta de vaca que, caindo sobre o quadrado certo desenhado no campo de futebol da freguesia, determina o vencedor de um sorteio. Há concursos de lançamento de bosta (de elefante, por exemplo) em várias partes do globo. Já há empresas que fazem papel de qualidade com bosta (novamente, a preferência vai para a do elefante). A bosta é, ainda, uma fonte inesgotável de biomassa.

 

Estava a falar com os meus alunos sobre os fósseis e, mais especificamente, sobre os fósseis dos dinossauros. Falei dos embriões petrificados encontrados na Lourinhã. Mas nada entusiasmou mais os meus ouvintes que a existência dos cropólitos, ou bostas convertidas em pedra, graças às quais tanto sabemos sobre os hábitos alimentares dos antepassados das galinhas.

 

É por isso que, perante a evidente decomposição que ameaça o mundo, ainda posso sorrir. O tempo é um enorme cropólito do qual ainda emana o calor bacteriano de outrora e que nos oferece, de futuro, uma limpa e mineral imagem do passado. 2008 foi cocó. Só falta dar-lhe sentido. Quanto a isso, deixem-me ser céptico.

Artigos da mesma série:
publicado por Manuel Anastácio às 13:36
link do post | Dizer de sua justiça | Adicionar aos favoritos
.pesquisar