Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de dentadas.
Não te lances ao pescoço das cobras
Não te lances
Não
Não te lances
Não te lances aos transes depressivos da repetição
Aos lances regressivos da depressão
Não
Não te lances
Não avances
Deixa-te estar, a ver cada réptil passar sob os teus pés
E a rirem em ti da sua frigidez
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de almas penadas
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de almas geladas
Não te lances se tens medo
Se tens medo, não avances.
Mas só se tiveres medo.
"A Ostra e o Vento", Chico Buarque
Graças à Internet, estabeleci com o Brasil uma relação de amor que eu mesmo não compreendo. Não conheço o Brasil. Não é lendo Cabral de Melo Neto, Machado de Assis e Jorge Amado que se poderá conhecer o Brasil, assim como não se conhece Portugal lendo António Lobo Antunes, ainda que muita gente, que viveu num certo Portugal onde eu nunca vivi, me jure a pés juntos que "aquilo era mesmo assim" - aquilo, aquilo que Lobo Antunes descreve ou evoca. Mas nada é mesmo assim. A literatura pode bem ser grande parte da alma de uma Nação, mas, apreendida sempre do ponto de vista de leitores diferentes, cria tantas nações quantas as noções falsas e preconceitos com que tentamos pintar os outros. Confesso que não conheço o Brasil, da mesma forma que, cada vez mais, não conheço Portugal. E confesso isso porque é importante, para que se compreenda a minha leitura do livro de Gláucia Lemos, "Bichos de Conchas", que se saiba que tenho com este livro uma relação que vai muito além da simples leitura e que se estende a uma relação de propriedade que quase toca as raias da autoria.
O exemplar que tenho em casa, de um livro que não está à venda nas livrarias portuguesas (como é costume, aliás, para quase toda a produção literária brasileira), foi-me enviado pela própria autora, com uma dedicatória onde sou tratado como "poeta". A sensação que tenho ao receber tal tratamento é bem mais complexa que a simples satisfação derivada de um elogio, e merecerá tratamento à parte, noutro artigo, que, provavelmente, nunca escreverei.
Certo dia, escrevi um poema dedicado à pontífice que me fez encontrar Gláucia, a Gerana Damulakis. O poema começa com o verso "Dizer liberdade e pensar num pássaro. Em voar."
Tendo a Gerana passado o poema para o seu blogue, li eu, nos comentários, que este verso bem poderia ser a epígrafe de um romance que tinha sido lançado na Bienal de São Paulo e laureado com o II Prêmio de Literatura da União Brasileira de Escritores – UBE/ Scortecci 2007. Na verdade, ao ler o romance, deu-me a impressão que tudo o que tinha escrito naquele poema estava ali, traduzido em narrativa.
O livro é, em primeiro lugar, de facto, narrativa. História contada. Frases que puxam outras frases que gritam por outras, avessas ao silêncio. Até porque tudo começa com a aversão ao silêncio. Uma mulher, um homem, uma praia e um farol. O homem, impenetrável, confunde-se, de início, com a figura de uma criança autista que cria formas mas não as nomeia. Como Deus que, enquanto Pai, não se pode confundir com o Verbo, a Palavra, apesar de Os Dois serem O Mesmo. Mas isto sou eu, autista, a tentar dar significados religiosos ao que de religioso tem apenas a motivação concreta de um profundo respeito pelo mistério transcendente que reside na mais simples manifestação humana. Mas essa leitura teológica está sempre presente, talvez de modo inconsciente, projectando determinados símbolos e formas de sentir religiosas que impregnam a existência humana, independentemente de qualquer atitude confessional. Gláucia chama a sua personagem principal, e narradora, de Celeste. E Celeste não é mais que um anjo caído. Um anjo que cai no momento certo em que escolhe a liberdade do vento, agente demoníaco que lhe sussura promessas de uma realização que o tacanho mundo de Lídio, o seu marido, não lhe parece, jamais, dar. Da mesma forma que Lídio, como Deus-Pai, lhe permite a emancipação e o livre-arbítrio, com o resignado silêncio de um desejo imponderável, porque nunca expresso. Lídio, organicamente estéril e com uma presença discreta em grande parte do romance é, contudo, a personagem mais fértil, porque dele deriva tudo, seja pelo silêncio, seja pela espera, seja pelo trágico movimento final, criador de todos os medos e encerrando em si a mais completa visão e justificação da ideia de Inferno. Por alguma razão se refere o título do livro aos seus filhos mudos e eternamente experimentais, feitos com galhos secos e conchas.
Há no livro um rodopiar de situações que o fazem aproximar, do estrito ponto de vista narrativo, às mais delirantes histórias de cavalaria, dando origem a situações inverosímeis do ponto de vista factual, mas que são sempre justificáveis pela verdade poética, filosófica e teológica de uma estrutura que, condensada em breves páginas, não deixa de ser marcada por um ritmo reflexivo que parece contradizer (ou contradiz mesmo) a frase inicial "a vida não traz Moral da História", enigmático ponto de partida de uma história que parece transbordar moralidade por cada poro. O escritor Hélio Pólvora usa a palavra fábula para se referir ao livro. E acerta em cheio. Uma fábula onde os bichos que falam e se substituem aos conceitos são seres humanos. Lídio diz, perto do fim, que "no ninho de uma gaivota pode muito bem nascer um filhote de graúna". Há, na simplicidade desta fórmula, toda uma profissão de fé sobre a Humanidade que faz lembrar o final do livro "Chama Devoradora" de Steinbeck, mas cuja verdade natural, etológica, está bem acima de qualquer construção ética ou moral sobre fidelidade ou sobre perdão. A vida não traz Moral da História. Mas a Vida é em si mesma, a suprema Moral de qualquer História.
Obrigado, Gláucia, por este presente. Guardá-lo-ei como parte de mim.
Cena de "Voando sobre um ninho de cucos"
1. Antes de mais, peço desculpa à Gláucia. O meu comentário ao seu belíssimo livro "Bichos de Conchas" será em breve tratado por mim. Agora não estaria em condições de escrever algo que seja minimamente digno da obra.
2. Já aqui comecei uma série de textos sobre os professores que me marcaram. Hoje, decidi inserir na série alguns comentários sobre um professor, que sou eu, e sobre todos os professores que agora, em Portugal, são quase unanimemente enxovalhados. E incluo no enxovalho algumas "instrumentalizações" por parte de alguns partidos políticos que só estão contra esta Ministra e um ainda pior Primeiro Ministro por razões eleitoralistas. E note-se que o Sócrates, ao dizer que não verga porque não se dirige por motivos eleitoralistas está, de facto, a fazê-lo. Ele sabe bem (e António Costa ou não sabe ou é lerdo de todo ou está a dizer que o que está perdido, perdido está, e para isso não são necessários comentadores políticos) que vergar no assunto far-lhe-ia perder mais votos que mostrar alguma flexibilidade. E, por incrível que pareça, isto tem, intrinsecamente, muito a ver com a avaliação dos professores. Até porque Sócrates, como qualquer político hábil (e Sócrates é um político hábil - caso contrário, como é que alguém sensaborão como ele continua a ser considerado pela maioria dos portugueses como "o melhor que poderíamos ter"?) sabe que mais vale perder 140 mil votos de professores que 4 milhões de votos (mais coisa menos coisa) de todos aqueles que o elogiam. Um professor também é avaliado pelos alunos e pelos pais. E o que se aplica ao povo que vota também se aplica a estes, no contexto da escola.
3. Ontem cheguei a casa completamente desanimado e a caminho da depressão. Não por causa da Avaliação de Desempenho e afins (f***** sei eu que estou, dando por onde der, por isso, já estou resignado). Não porque me considere mau professor ou "joio" que vá ser espadeirado por este ou outro modelo de avaliação. A minha profissão será sempre 95% de desilusão e frustração e apenas 5% de realização pessoal. Mas, simplesmente, porque uma aula me correu mal. Muito mal. Pessimamente. Se o meu avaliador assistisse a esta aula, será que teria o discernimento necessário para compreender que até os "Excelentes" podem ter aulas como esta? Provavelmente teria, mas, com as quotas a apertar, eu seria relegado imediatamente para os "Bons" (porque "regular", meus amigos, é coisa que não sou).
4. O Alberto João Jardim decidiu classificar todos os professores como "Bons" e foi um Deus-me-acuda entre os defensores da Ministra... Estranho. Esses defensores da Sinistra saberão que a nota de "Bom" não é sujeita a quota???? Nada impede os avaliadores de darem "Bom" a todos os professores da escola, dando os poucos "Muito Bons" e "Excelentes" àqueles que aparentam estar na excelência. A medida do Alberto João é, em termos absolutos, lesiva para os professores da Madeira, já que todos são nivelados por baixo. Mas não sei de notícia de professores excelentes que tenham reclamado. Por uma razão (isto sou eu a pensar): por solidariedade para com os colegas que podem não ser excelentes como eles, mas que, provavelmente, são melhores professores que eles. E se há coisa que vejo entre todos os meus colegas é esta solidariedade e esta compreensão ecológica do ecossistema educativo.
5. Enviaram-me, há dias, um mail daqueles meio melosos com sabor à Paulo Coelho, mas que me serviu de motivo de reflexão. Conta a história de uma velha chinesa que ia à fonte buscar água com um cântaro intacto equilibrado numa haste com outro cântaro rachado. O cântaro intacto chega a casa sempre cheio. O cântaro rachado, sempre meio, ou menos. O cântaro rachado lamenta-se. A velha acalma-o e diz: "Reparaste que lindas flores há no teu lado do caminho, somente no teu lado do caminho ? Eu sempre soube do teu defeito e portanto plantei sementes de flores na beira da estrada do teu lado. E todos os dias,
enquanto voltávamos do rio, tu regava-las. Foi assim que durante dois anos pude apanhar belas flores para enfeitar a mesa e alegrar o meu jantar. Se tu não fosses como és, eu
não teria tido aquelas maravilhas na minha casa!". Sorri, e pensei no que a Ministra, lacaios socialistóides e outros bem pensantes poderiam aprender com esta velha. Mas não aprenderão. Estamos numa era onde as metáforas à Paulo Coelho só servem para vender Best-sellers, não para se aplicar à realidade, que é dura e não se compadece de vasos rachados por causa de insignificâncias como flores. Vou dizer algo muito à direita; algo que o próprio Paulo Portas ou o tipo do PNR-ou-raio-que-o-parta poderia perfeitamente dizer: vivemos num país onde delinquentes e parasitas são gratificados com o Rendimento Mínimo Garantido, mas onde trabalhadores sérios, apenas por meia rachadura, poderão ver a sua vida destruída. Eu sei. É feio o que eu disse. Podem riscar, se quiserem. Eu podia fazer delete. Mas não faço.
6. Tive muitos professores que, sob um modelo de avaliação como o que vamos ter (a "simplificação" prometida pelo Sócrates não augura nada de bom) seriam considerados vasos rachados. Graças a eles, contudo, tenho muitas flores que, por vezes, só anos mais tarde vi a florescer. Professores que, quase de certeza, não faziam planificações de aulas formalmente e por escrito. Professores que davam imensas negativas. Professores que eram ou demasiado exigentes ou demasiado permissivos. Professores que não cumpririam metade dos níveis de excelência burocráticos e estatísticos definidos nas fichas de avaliação deste modelo. Professores que serão, para mim, os melhores professores que tive. Enquanto que tive professores muito organizadinhos, e que facilmente seriam classificados como excelentes por este método de avaliação e que eu tenho como sendo, não os piores professores que já tive, mas, simplesmente, as pessoas mais asquerosas que alguma vez me passaram à frente. Exemplos concretos (com nomes e tudo, seja o que Deus quiser) à frente.
7. Um dos meus mais queridos professores de sempre, farmacêutico na minha terra natal, o professor Baptista Rei, sempre foi o contrário de quase tudo o que é considerado excelente nas malfadadas grelhas de avaliação (ver ponto algures mais adiante). Um dia, estando eu a dar aulas nessa mesma escola, encontrei uma mesa vandalizada que me fez vir lágrimas aos olhos. No tampo liso estavam gravadas as iniciais M R e B R. M de Manuel, R de Rui e BR de Baptista Rei. Feitas com pólvora. Por mim, pelo meu querido colega Rui Navalho e pelo professor, depois de termos misturado salitre, flor de enxofre e carvão, com a paciência de alquimistas. Não sei o que pensaria a Ministra e os seus lacaios de tais experiências para-educativas não ortodoxas. Aquele pequeno vandalismo controlado foi uma das experiências que mais contribuiu para a minha felicidade como pessoa (e eu creio que a escola serve para nos tornar mais felizes, a nós, alunos). Provavelmente, não compreenderão. Provavelmente, chamarão ao incidente irresponsabilidade. Por mim, se fosse eu, hoje, a avaliar este meu professor, dar-lhe-ia a nota "Excelente". E as grelhas de avaliação que fossem dar uma volta ao bilhar grande.
8. Uma das professoras mais repugnantes que tive, de nome Filomena Baião (espero que ela um dia digite o seu nome no Google e encontre o recado), era exactamente o oposto. Metódica. Organizada. E permitiu, impávida, que eu fosse humilhado por um queridinho dela, de forma gratuita. Estarei a ser parcial na minha avaliação desta pessoa? Provavelmente estou. Um avaliador burocrata dar-lhe-ia excelente. Eu dar-lhe-ia um insuficiente. Por falta de compaixão.
9. Uma (excelente) professora minha, de nome Helena Bicho, ensinou-me, a mim e aos grunhos da minha terra, a reverenciar o nome dos grandes pensadores da História da Humanidade. Um aluno tinha escrito num teste: "O Platão dizia que..." e ela explicou que não era o Platão nem o Sócrates. Era Platão e Sócrates, sem artigo definido antes...
10. ... mas o Sócrates disse que, perante as queixas respeitantes aos aspectos burocráticos da avaliação, verificou a ficha de definição de objectivos individuais de algumas escolas e considerou que não eram nada de muito difícil de preencher. E assim passou um atestado de burrice aos professores portugueses em geral. Acontece que a Burocracia não está no preenchimento dessa ficha, mas nas algemas a que nos acorrentamos ao preenchê-la. E está nas grelhas de avaliação com que vamos ser avaliados. Talvez a Ministra não lhe tenha feito chegar às mãos as ditas. Ou talvez sim. Não sei.
11. Ontem cheguei a casa desanimado. Já o disse. Uma aula minha correu pessimamente, apesar de duas terem corrido de forma impecável e duas delas terem decorrido satisfatoriamente. Tudo porque um aluno não tomou a medicação. Medicação que não tomou porque a mãe ou não lha pôs na mochila (como ele costuma alegar - mas ele alega muita coisa) ou não lhe apeteceu ou, simplesmente, tomou-a e decidiu fingir que a não tomou.
12. Um dos filmes que me marcou, e que marcou a muita gente, foi o "Voando sobre um ninho de cucos". A moral é conhecida: seria um atentado à condição humana modificar comportamentos utilizando meios químicos. Seja. O certo é que se aquele aluno não tomar a medicação, começa a disparatar e a desobedecer da forma mais exuberante e alienadamente criativa que se possa imaginar. E ontem disse-me: "É o pior professor que eu tenho" e, ignorando qualquer esforço meu para que houvesse ordem, escreveu no quadro "O Setor Bouca emerda".
13. Hoje de manhã, sábado, fui com alunos a uma caminhada. Terminámos no parque da cidade. Falei com encarregados de educação que nos acompanharam. Jogámos ao mata. Os professores ganharam. Fizémos um piquenique. O sol de Outono passava entre as já meio despidas folhas das árvores junto ao ribeiro. Uma aluna, que toma a mesma medicação que o aluno atrás mencionado, conversou amenamente comigo. Foi bom. Senti-me um bom professor.
14. Estava no meu primeiro ano de professor. Em Mértola. "Não lhes mostres os dentes e nunca perdoes", diziam-me. E eu, crente na bondade das crianças, mostrei-os. Tive a devida paga com a indisciplina que cai sobre os ombros de quem se atreve a acreditar nos bons sentimentos dos outros. Um dia, depois de corrigir vinte e tal testes de Matemática com notas na sua maioria miseráveis, cheguei à sala e comecei a distribuí-los. Instala-se o burburinho típico do "quanto é que tiveste" e do "deixa ver o que é que respondeste a esta". Um aluno (do ensino especial) recebe o teste das minhas mãos, vê a nota e senta-se no chão a chorar. Tento falar com ele e dizer que o importante não é a nota do teste, mas o esforço e o empenho que ele me venha a demonstrar. Mas ele não é capaz de dizer palavra entre os soluços. Uma colega, que se pusera ao seu lado para o confortar, diz-me: "não é isso, professor, é a primeira vez que ele tem um Excelente".
15. Não sei que avaliação vem aí depois das operações de cosmética simplificativa deste governo. Não sei. Eu avalio-me todos os dias. Sofro quase todos os dias com a minha própria avaliação. Sofro também com a avaliação dos outros. Mas para mim, Manuel Anastácio, o Setor Bouca não emerda. Nem que o meu avaliador tome a medicação direitinha todos os dias.
- Gostas da Ministra?
- Gosto.
- Gostas?
- Sim, panada ou com ovo a cavalo, fica sempre bem.
Nota: escrevo este post num breve intervalo. Tenho mais coisas para fazer. Incitar os alunos à rebelião irracional, por exemplo.
Será que não entendem que não são os professores que estão a instrumentalizar os alunos, mas sim os alunos, que este governo sempre quis apaparicar com falsas noções de sucesso e de responsabilidade, que estão a instrumentalizar o descontentamento e a revolta que vêem nos professores?
Não. Não entendem.
Aqui.