Segunda-feira, 30 de Junho de 2008
Da Música e Outros Demónios

Amy Winehouse, Tears Dry On Their Own

 

Quem me conhece tem, invariavelmente, a impressão que para mim só existe a música dita erudita, ou séria, ou clássica, ou o que lhe quiserem chamar (que ela não é, pelo menos no seu todo, nenhuma das coisas atrás referidas) e que desprezo todas as outras formas ou géneros musicais. Mas para mim existem apenas dez tipos de música1:

a) a que eu gosto,

b) a que eu não gosto,

c) a que me interessa ouvir antes de saber se gosto ou não,

d) a que não quero ouvir sequer pela primeira vez, porque já sei o que é que a casa gasta,

e) a que não gostava e aprendi a gostar,

f) a que não desgosto, mas ainda não gosto porque não me atrevo a não gostar, porque acredito que vou gostar um dia;

g) a que gostava e agora me enjoa, ou pior.

h) a que não interessa se gosto ou não;

i) a que ouvimos quando estamos nos sanitários dos centros comerciais e nos elevadores - até se ouve, mas já deixou de ser música (a música dos call centers cai na alínea d));

j) a que se ouve no Pingo Doce2;

 

De cada uma delas:

a) se gosto, é porque gosto. Por exemplo, o "Liebestod" do "Tristão e Isolda" (não, não são os compositores da peça nem uma dupla sertaneja), o "Requiem" de Mozart, ou mesmo o de Verdi, ou o "Back to Black", da Amy Winehouse (geralmente coisas muito saudáveis e alegres, cheias de alegria de viver e que afastam qualquer pensamento sombrio);

b) não gosto de... das alíneas d) e f);

c) por exemplo, o último CD dos Portishead ou o concerto para violinos do Chopin3;

d) qualquer coisa do Quim Barreiros4 (mesmo que seja a comer sardinhas e a beber vinho carrascão, não suporto o homem, ou a-coisa-com-bigode-ou-lá-o-que-é e pronto!) ou do Toy4;

e) desta não dou exemplos, que é para parecer que sempre tive bom gosto;

f) não vou dar exemplos, porque não quero revelar (ainda mais) a minha mediocridade intelectual;

g) por exemplo, a "Valsa das Flores" do Tchaikovsky e outras coisas melosas que encantam facilmente quando não conhecemos mais nada; ou músicas potáveis que, de tanto ouvir em tudo o que é sítio ganham cor de beringela;

h) o "para Elisa" do Beethoven, por exemplo; ou uma canção dos Delfins;

i) Moby - por exemplo o "How does my heart..." (que serviu de fundo a um anúncio5 da SuperBock que se passava na praça da Oliveira, aqui, na minha Guimarães, quando ainda não era minha, e que marcava as passagens de ano nas televisões portuguesas); ou a passagem mais conhecida da "Primavera" do Vivaldi (não a peça completa, que já passa para a alínea a))

j) a música do "Doutor Jivago" tocada num sintetizador dos anos 80.

 

Está feito o meu retrato musical. Como sempre, ou quase sempre, não era este o artigo que eu queria escrever. Nem sequer era um artigo sobre música, mas um artigo sobre cinema, a sua relação com os videoclips - ou se os videoclips são cinema ou, apenas, um produto "audiovisual" - e, principalmente, os videoclips que mostram pessoas a cantar enquanto seguem na rua, cruzando-se com todo o género de fauna humana, ou com todas as variantes (ou as principais, geralmente tristes) da Condição Humana. No primeiro caso, temos o "Tears Dry On Their Own" (muita fauna humana); no segundo caso, o "Unfinished Sympathy", dos Massive Attack, que, num dos mais emocionantes planos sequência de que tenho memória, exprime a lama com pétalas de flor, enquanto Shara Nelson recita, como quem canta, que é como uma alma sem mente, num corpo sem coração, sentindo a ausência de cada parte. Um plano sublime, uno, completo, íntegro e perfeito sobre fragmentos sórdidos, decepados e desfeitos nas imperfeições próprias de se ser humano. Camões não faria melhor com as suas antíteses sobre o Amor.

Massive Attack: "Unfinished Sympathy"

 

1. Pronto, se calhar, há mais, mas não tenho tempo nem paciência para fazer mais alíneas;

2. Cadeia de supermercados em Portugal (nota para os amigos brasileiros que ainda têm paciência para me aturar), que já foi supermercado dos que se julgavam ricos e que agora também quer ser dos pobres (porque os primeiros entraram em vias de extinção): nota 2.1. não sei que música passava o Pingo Doce quando era supermercado dos que se julgavam ricos;

3. Ainda para os amigos brasileiros (ver aqui);

4. Amigos brasileiros: vão por mim, não queiram saber do que é que estou a falar.

5. Digam lá que a minha5.1 terra não é linda?

5.1. Lá por não andar a tocar tambores na festa do pinheiro5.1.1, não deixa de ser minha.

5.1.1. Festa, antes do Natal, em que todos os estudantes que o foram em Guimarães  (menos os da UM5.1.1.1) não deixam ninguém dormir e esfolam as mãos todas a bater em tambores e a abanar couves galegas, enquanto uma parelha de vacas puxa um pinheiro cortado (uma festa muito pouco ecológica, tanto pela árvore cortada - e pelas pobres couves, como pelo tormento que as vacas passam).

5.1.1.1 Ia dizer uma coisa qualquer muito espirituosa, mas estou com sono. Até amanhã, se Deus quiser, se tiverem a internet a funcionar, não tiverem perdido o endereço e se não quiserem perder o magnífico artigo que vou publicar amanhã.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:33
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Domingo, 29 de Junho de 2008
Enciclopédia íntima: Pútegas

Pútegas, imagem do Wikimedia Commons

 

Há coisas que se aprendem na escola, mas que são falsas. Quase todas as generalidades que dizemos sobre a vida são, num dado momento, falsas. Aprendemos que as plantas são seres autotróficos, isto é, que produzem o seu próprio alimento. Ora, se isso é verdade para a grande maioria, não faltam por aí plantas heterotróficas que, tal como os animais, se alimentam da seiva elaborada pelas suas irmãs providas de clorofila. É o caso das Orobanchaceae, e em especial desta extraordinária Orobanche sanguinea.

 

As pútegas  (Cytinus hypocistis), raro nome, formam outro interessante género de plantas, da família das raflesiáceas, parasitas das estevas (género Cistus), plantas que invariavelmente enchem a paisagem mental da minha infância e que são de todo ausentes aqui no Norte húmido de Portugal.

 

São plantas pequenas, amarelo-avermelhadas, de caules muito curtos, com
folhas escamiformes, densamente imbricadas. São monóicas, ou seja, têm flores hermafroditas. Vivem a maior parte do tempo enterradas, aflorando, junto às raízes das estevas de que se alimentam,  apenas para florescer. As folhas, carnudas, são comestíveis, mas era o néctar doce das flores que punha as crianças à sua procura. Entre os seis quilómetros que separavam a escola do Sardoal e o perímetro da minha aldeia, quando não tínhamos paciência para esperar pelo autocarro, era frequente ir, com os meus colegas, às pútegas. E ríamos com a piada fácil. Mas eu raramente as encontrava. Entre o xisto e as resinas dos pinheiros e das estevas, entre o Vale da Amarela e o Vale de Carvalho, hoje calvas cabeças roídas pelo fogo, apenas encontrava a inocência de quem não sabia que aquele mundo estava a acabar.

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publicado por Manuel Anastácio às 09:13
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Sábado, 28 de Junho de 2008
São Mamede

São Bernardo e a Virgem, Alonso Cano, Museu do Prado

 

A 24 de Junho, quando Portugal em peso faz fogueiras a São João, praticamente só em Guimarães se celebra aquilo que, desde os Anais de D. Afonso, Rei dos Portugueses, é considerado o primeiro episódio da história portuguesa: a Batalha de São Mamede.

 

“Na era de 1166 [ano de 1128], no mês de Junho, na festa de S. João Batista, o ínclito Infante D. Afonso, filho do conde Henrique e da rainha D. Teresa, neto do grande imperador da Hispânia, D. Afonso, com o auxílio do Senhor e por clemência divina, e também graças ao seu esforço e persistência, mais do que à vontade e ajuda dos parentes, apoderou-se com mão forte do reino de Portugal. Com efeito, tendo morrido seu pai, o conde D. Henrique, quando ele era ainda criança de dois ou três anos, certos [indivíduos] indignos e estrangeiros pretendiam [tomar conta] do reino de Portugal; sua mãe, a rainha D. Teresa, favorecia-os, porque queria, também, por soberba, reinar em vez de seu marido, e afastar o filho do governo do reino. Não querendo de modo algum, suportar uma ofensa tão vergonhosa, pois era já então de maior idade e de bom carácter, tendo reunido os seus amigos e os mais nobres de Portugal, que preferiam, de longe, ser governados por ele, do que por sua mãe ou por [pessoas] indignas e estrangeiras. Acometeu-os numa batalha no campo de S. Mamede, que é perto do castelo de Guimarães e, tendo-os vencido e esmagado, fugiram diante deles e prendeu-os. [Foi então que] se apoderou do principado e da monarquia do reino de Portugal.” (in "Dom Afonso Henriques", José Mattoso, Círculo de Leitores, 2006, página 45))

 

Onde seria, ao certo o campo de São Mamede, não o sabemos. Diz a tradição que foi no Campo de Ataca onde hoje se ergue um monumento de granito ao acontecimento, a que voltarei mais tarde.

 

Campo de Ataca, São Torcato, Guimarães - foto minha em Creative Commons

 

Mas hoje queria apenas falar de São Mamede. O Santo que, involuntariamente, se associou ao nascimento de uma Nação. Duvido que houvesse aqui simbologia intencional, mas, como diz Fulcanelli no seu "Mistério das Catedrais", não existem coincidências que não sejam reveladoras dos mistérios mais profundos. Não sei se acredito nisso, mas não deixa de ser um exercício fascinante. São Mamede foi um santo lactante e isso é deveras interessante, tanto pelo tabu que em relação ao assunto hoje se faria (um santo que dava de mamar a crianças é algo de altamente suspeito hoje em dia e resultaria em acusação de crimes vergonhosos). De facto, a história de São Mamede é de tal maneira constrangedora para a mentalidade e moral actual, que a própria narrativa, claramente mítica e alegórica, foi sendo amenizada ou, pelo menos, expurgada da versão tradicional e popular que, ainda seguindo o pensamento de Fulcanelli, será a versão mais reveladora dos mistérios ocultos. Segundo esta, São Mamede (Saint Mammant, versão afrancesada de San Mamante, em Italiano; apesar de hoje se utilizar, em França, a versão Saint Mammès) terá encontrado um bebé abandonado e, não tendo com que o alimentar, recebeu a graça divina da lactação. A  história mais ortodoxa refere apenas a vinda de um anjo que trazia leite e mel (associação muito bíblica, de facto) a quarenta crianças que com ele estavam condenadas a morrer à fome. Seja como for, tornou-se no santo padroeiro da amamentação, o que é deveras curioso, sendo homem e não mulher. Note-se que Aristóteles considerava que os fluidos corporais, como o esperma e o leite eram produzidos no organismo, de forma semelhante, a partir da cocção do sangue. As mulheres nunca seriam capazes de produzir esperma (que Aristóteles considerava um fluido de grande perfeição, vá-se lá saber por que razão...) porque o seu calor corporal seria sempre insuficiente para a formação de tão exigente emanação. Já o leite, que seria um tipo de esperma imperfeito, não exigia tanto calor, pelo que as mulheres o fariam facilmente. Mas a fúria misógina da Ciência aristotélica vai ao ponto de nem sequer dar a exclusividade da produção de leite à mulher - de facto, o homem também tem mamilos, pelo que seria perfeitamente natural que, em certos casos, produzisse este fluido nutritivo.

 

São Mamede é um exemplo de como as metáforas religiosas do cristianismo, prenhes dos mais pagãos dos significados, podem ser tão ou mais fascinantes que as mitologias greco-romanas, pelo simples facto de que estas mitologias estão ainda vivas e em construção na mente colectiva do povo, ainda que em curso de desaparecerem, agora que, estando  tudo na Internet, não vale a pena memorizar. Sobre a memória e sobre o acto de amamentar falarei em próximos artigos.

 

Daqui, resta reter que o Santo que presidia ao local onde se deu, de facto, o desmame de Afonso Henriques, não era mais que o santo da amamentação. Curioso.

 

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publicado por Manuel Anastácio às 15:00
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A pior canção do mundo

Clique no play se estiver na disposição de ouvir 25 minutos de música pensada especialmente para o desagradar.

 

Esta canção foi escrita por Dave Soldier (música) e por Nina Mankin (letra), a partir de uma ideia de Vitaly Komar e Alexander Melamid, que se propuseram a criar, conceptualmente, a pior canção do mundo - aquela que resultasse da intersecção do que nos poderá repugnar, a cada um, individualmente, numa canção. Trata-se, por isso, de tentar imaginar a música que menos nos apeteceria ouvir. A pesquisa efectuada pelos criadores chegava a pretender que menos de duzentas pessoas no mundo poderiam vir a gostar de ouvir isto. Digo "isto", não porque despreze o resultado, mas porque tenho as minhas dúvidas quanto à eficácia desta obra, enquanto obra de arte conceptual. Pode ser arte aquilo que pretende ser mau? Sim, pode. Não discutirei isso agora. Mas poderá ser arte aquilo que, pretendendo ser mau, consegue ser apreciado como bom? Ou melhor: a arte conceptual trata de produzir objectos ou qualquer modo de expressão que consigam veicular um conceito, uma ideia. Ora, aqui, a ideia era provocar repugnância auditiva à esmagadora maioria dos representantes da espécie humana. Não duvido que muitos não ouvirão mais do que meio minuto - outros não aguentarão quatro minutos - mas tenho a certeza que muitos haverá que, tal como eu, ouvirão esta canção de 25 minutos e repetirão a experiência. Enquanto obra de arte conceptual, esta peça falha redondamente, porque haverá bem mais de duzentas pessoas no mundo a adorar a peça. Mas adoramos a peça por que razão?... Simplesmente porque é divertida. Quem não sorrir ao ouvir esta maravilha do humor sonoro é, simplesmente, um cara de pau. É arte? É. É a pior canção do mundo? Não. Nem de perto. Haverá quem diga que o humor brota naturalmente do mau gosto. Discordo em absoluto. O mau gosto teria inevitavelmente de conter em si aborrecimento e sisudez, e só há aborrecimento e sisudez perante a ortodoxia musical de cada género, para quem o não aprecie. Assim, ao amante da ópera repugnarão os cantares ao desafio (em princípio); ao amante do rap repugnará uma peça dodecafónica. Em princípio. Mas se há coisa mais volátil no mundo das artes é a pretensão de conseguir algo com o gosto do espectador, porque este é infuenciado, nas suas preferências, pelas expectativas e pelo seu passado. Tentar criar, cientificamente, má música, que seja consensualmente  má, é um logro e uma impossibilidade. Estamos condenados a sentir agrado naquilo que detestamos.

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publicado por Manuel Anastácio às 01:42
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Quinta-feira, 26 de Junho de 2008
As Metamorfoses de ouvido

Cena final de "Ordet" - "A Palavra", de Carl Theodor Dreyer. Não ver, a não ser que já tenham visto o filme, ou se não fizerem intenção de o ver.

 

Já aqui falei, por várias vezes, do José Eduardo Lopes. Hoje quero apenas falar desta pequena (ou grande) maravilha que são as suas "Metamorfoses de Ouvido". 15 contos de diminuta dimensão textual, mas de infinita misericórdia verbal. Misericórdia, porque repletos de compaixão e compreensão. Misericórdia verbal, porque emanam do Verbo, da Divindade - da Palavra. Das palavras. Não sei o que haverá em terras africanas para dar à luz tais artífices da palavra. O José Eduardo é um artífice, não porque não seja um artista, que o é, mas porque é um artista ao modo de antigamente, apesar de usar formas modernas de expressão (a micronarrativa). Ao modo de antigamente, porque dá valor ao próprio material que usa, não o pondo em causa, como em tanta manifestação artística que enche os nossos museus de arte moderna. A palavra, na mão de José Eduardo, é já de si um objecto em constante metamorfose, mas cujo espaço temporal captado é sempre o da revelação: da passagem da crisálida para insecto de cor e luxúria. Luxúria, porque não conheço narrativas que, partindo de algo tão imaterial como as palavras, consigam transportar em si a maravilha da carne, seja no estertor do prazer, seja nos espasmos do sofrimento.

 

A revista minguante publicou este e-book, que poderá ser folheado, quase literalmente, por qualquer pessoa que se queira metamorfosear no breve espaço de um clarão. Verbal.

 

Só uma nota, que em nada diminui o valor destes contos: os gémeos siameses são sempre do mesmo sexo. Mas Shakespeare também pôs Desdémona a sussurrar perdões quando, supostamente, morria sufocada. A arte e a verosimilhança não têm, necessariamente, de coabitar.

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publicado por Manuel Anastácio às 21:50
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