Sábado, 26 de Janeiro de 2008
Enciclopédia Íntima: Plano-sequência

Plano-sequência de Dunquerque, em "Expiação", de Joe Wright


Um plano-sequência pode ser muita coisa. Mas posso defini-lo como sendo o mais teatral dos planos. Em "A Arte do Cinema", Rudolf Arnheim usa a palavra "violenta" para referir-se à, actualmente, mais compreensível das estratégias narrativas cinematográficas: a montagem. Alguém bate à porta, e estamos na rua - e numa fracção de vinte quatro avos de segundo já estamos dentro de casa a abrir a mesma porta que também para nós estava fechada. No plano sequência só poderemos esperar que a porta se abra ou, então, procurar uma entrada alternativa: talvez entrar por uma janela ou pelo telhado; recurso  esse muito utilizado em alguns dos filmes mais insistentes da História do Cinema, como o "Citizen Kane" de Orson Welles ou o mais esquecido (mas frequentemente ressuscitado) "One from the Heart" (em português de Portugal, "Do fundo do coração") de Francis Ford Coppola. Os planos sequência permitem-nos fazer percursos "menos violentos" na perspectiva assustada de Arnheim, no nosso lugar fixo de espectador. Orson Welles, no seu "Touch of Evil", pretendeu, com certeza, brincar com a violência dos cortes da montagem depois de um longo plano em que subimos e deslizamos junto a uma fronteira onde, no momento em que tudo parece acalmar em braços apaixonados, o plano é subitamente interrompido.


Planos iniciais de "Touch of Evil", de Orson Welles.


Em "O Passageiro: Profissão Repórter, Antonioni prefere trazer a violência para o próprio plano, escondendo-a. Enquanto divagamos e atravessamos as grades, algo acontece no ponto de partida.

"O Passageiro: Profissão Repórter" de Michelangelo Antonioni.

Andrei Tarkovsky, autor de um tipo de cinema que só quem procura poesia nesta arte poderá apreciar, comete a inaudita violência da lentidão pendular, onde a fragilidade humana se concentra numa tarefa aparentemente sem sentido. Também aqui, como em Welles, o plano sequência é apenas um caminho que desemboca na vertigem da montagem onde perdemos consciência do que vemos, obrigados que somos a arrancar a alma do lugar onde estava.

"Nostalgia", de Andrei Tarkovsky


Mas se falo de planos-sequência, é apenas por causa do premiado "Atonement" ("Expiação", em Portugal), filme cuja habilidade técnica a nível de montagem e de mise-en-scène, não chega, ao que parece, para o tornar no filme do ano. De facto, não é nem pode ser. É um filme irremediavelmente datado como a inscrição numa lápide funerária. Todo o filme é, de facto, um monumento fúnebre que pretende, através da ilusão da imagem e do som, evocar as cinzas da eterna separação e dos actos imperdoáveis. Há uma passagem em "Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister" onde Goethe conduz o jovem iniciado a um mausoléu de luz. A descrição do ambiente tem algumas semelhanças com a relação que o estado totalitário de "Admirável Mundo Novo" pretende que os seus cidadãos tenham com a Morte. Este filme, sem ter grandes pretensões intelectuais, dá-nos, contudo, a ingenuidade num prato de suavidade. E a morte deve-nos ser servida assim mesmo: com a suavidade do que é irremediável e com a ingenuidade de quem pensa que a vida continua. Sendo um filme baseado em literatura, será normal levantarem-se as típicas e enjoativas vozes que dizem que o livro é melhor... Não faço ideia se é. Se for, tanto melhor. O filme  é académico até à exaustão, não tenho dúvidas, mas o movimento pendular da narrativa, usado de uma forma impecável e certinha aparenta este filme mais ao plano de Tarkovsky que a qualquer outro dos que apresento neste post, enquanto o Youtube os não fizer desaparecer por conta dos direitos de autor. O filme é datado, já disse. Tem um sopro de Joseph Losey e David Lean, seguindo a tradição britânica dos filmes que confundem os adereços com a alma. E a grande maravilha e espanto, o coração deste filme é um plano-sequência, na praia de Dunquerque, que resume em si a essência artística do  épico melodramático. Ninguém tenta atravessar a praia com uma vela acesa. O plano que se segue ao plano-sequência não quebra a corrente teatral do movimento. É apenas um plano-sequência, improvável até à exaustão, sem outro objectivo que não seja o de mostrar um percurso onde os horrores da guerra ficam, de facto, camuflados pelo movimento poético e patético de um plano muito bem filmado. Como uma estela funerária onde não devem figurar sinais que lembrem ossos ou podridão.
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publicado por Manuel Anastácio às 16:43
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Quarta-feira, 16 de Janeiro de 2008
Sobre

Árvore não identificada (peço ajuda à Manuela Ramos, ou a quem tenha olho para a identificação de árvores) junto à escadria de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego. Foto minha em Creative Commons atribuição 3.0 Unported

Sonho com cores esbatidas
e portas que nada escondem.
Sonho com folhas esmaecidas
em frio e nevoeiro
com um leve cheiro a maçãs e a partidas
sobre escadas que apenas seguem e regressam para ti.

publicado por Manuel Anastácio às 20:55
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Domingo, 6 de Janeiro de 2008
Circulares obrigações

Aspecto da nave transversal da Igreja de São Gião, Nazaré. 26 de Dezembro de 2007. Foto minha em Creative Commons atribuição 3.0 Unported

Não mando mensagens de Natal nem de Ano Novo a ninguém. Também não sou muito de dar os parabéns a aniversariantes. Tenho alergia a manifestações cíclicas de bondade postal ou electrónica, como se fôssemos um farol obrigado a emitir um sinal periódico. A única circularidade do tempo a que reajo com veneração é à sucessão das estações do ano. Sucessão cíclica essa que se deve apenas ao simples acaso de vivermos numa bola que gravita em torno de um luzeiro. Vivêssemos nós nas costas de uma tartaruga que nadasse num infinito oceano sob um eterno fundo cósmico de luz, e o calendário seria uma linha sempre em frente. Mas não. Devido a um mero capricho das leis físicas nascidas da nossa origem material, até a vida do nosso espírito se tem de submeter aos mesmos processos de repetição. É assim que a religião faz nascer deuses-meninos que leva, poucos meses decorridos, ao madeiro sacrificial. É essa a essência do Ritual e da vivência das Mitologias que dão sentido ao mistério de estarmos provisoriamente vivos. É por isso que não fico indiferente aos natáis e às páscoas, às passas e à louça velha atirada pela janela. As doze badaladas que ninguém ouve, ofuscadas que são pelo estalar dos foguetes, remetem-me para a inevitável condição de habitante de uma bola presa ao cordel elástico e latejante da gravidade. Mas não sinto que o meu desejo de felicidade se deva cingir ao calendário. Muito cómodo, dirá alguém com um sorriso irónico nos lábios. Talvez seja. Preguiça. Seja, deixem-me ser preguiçoso nestas alturas, para que possa responder com palavras e actos sinceros a outras solicitações que não estejam gravadas em repetição eterna na Google Agenda.
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publicado por Manuel Anastácio às 13:47
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