Relicário de coral da Rainha Santa Isabel, de inícios do século XIV, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra. Foto de José Pessoa (Instituto Português de Museus)
Parece um castiçal onde duas velas, tomando a cor do sangue do mistério eucarístico, se tivessem contorcido na dor da paixão, distorcendo a própria base de metal cruzado, assente em dois leões levantados, de boca aberta e olhar de besta faminta. Suportam eles duas traves curvas que se cruzam sob as armas de Aragão e terminam no focinho de dois cães que latem em polos opostos, mas cujas pregas lavradas se assemelham à gema terminal de um caule que espreita o advento da Primavera. Sobre o cachaço dos cães, assentam dois prismas... hexagonais? Não é permitido ao narrador especificar muito mais - talvez sim, talvez não... não é este narrador descritor um espírito que se intrometa à volta do quarto para poder fazer melhor a descrição da peça... a rainha olha o magnífico objecto que tem à frente, mas não o descreve com a mente, apenas sente-o a imprimir-lhe manchas azuladas na retina quando cerra os olhos. Os dois prismas, assentes nos motivos zoomórficos, representam a transfiguração dos dois princípios morais na força criadora da natureza. O Bem e o Mal, arrancam dali num emaranhado de ramos desorientados e incongruentes, com remendos de metal que parecem dedos postiços a indicar de forma bruta e rígida o caminho ascendente em direcção à ordem apaziguadora. Tudo pelo meio das chamas alaranjadas do coral arrancado da escuridão rasteira do leito do mar, agora trasnportadas pelos artifícios do artista, a objecto de iluminação. Nada há aqui de princípios morais: apenas formas da própria natureza. A base do relicário, com os bichos que costumam assentar guarda nos túmulos das damas: cães e leões (alguns, mesmo, a disputar um osso, para a eternidade, num acesso de humor negro do mestre canteiro), são interpretados, amiúde, pela mente humana, como símbolos das virtudes e das fraquezas dos homens - são aceites pela estatuária oferecida como morada aos mortos, porque tal arquitectura é legítima e aceite aos olhos do criador. Deus é o Arquitecto. Aos homens resta a humildade de o imitar sem presunção, não de criar seja o que for. A Arquitectura é, no fundo, um pecado de orgulho e vaidade. E um relicário, como um túmulo, é uma peça de arquitectura para o espírito que nele é convocado através dos restos que, a bem dizer, são pedaços de podridão sem qualquer santidade. Mas é mesmo nessa podridão que reside o milagre. Não seria grande o feito divino, o de santificar o que é belo. A beleza, não se mantendo com a Graça exclusiva de Deus, só pode tomar o caminho da degradação, se deixada ao seu próprio alvedrio. O que é repulsivo, pelo contrário, procura o que é belo. E só é belo o que ascende a Deus. Os ramos fantasmagóricos do coral, interrompidos por excrescências de ouro que tentam dar unidade àquilo que a mente limitada humana nunca compreenderá, terminam como uma coluna que representa a unidade divina, acima do confronto temporal entre o Bem e o Mal. Identificar Deus com o Bem é de uma simplicidade que não satisfaz nem aos santos nem aos danados que nestas coisas cogitam (e serão, provavelmente, mais os danados que os santos a fazê-lo, e os primeiros, ao que parece, arderão nas dúvidas para a eternidade, não terminando jamais a sua tarefa de procura da sabedoria). Deus, de facto, está acima dessas coisas. É apenas pela arbitrariedade da sua Graça que os santos se sentam perto do seu calor. Da base una do relicário, acima da batalha de coral e das misérias da criação, ramifica-se, como base de três luzes, a simetria divina apartada da criação e do tempo, apartada das misérias, das dores, das contorções e dos juízos morais. A base una, assente em folhas de ouro, assume a única arquitectura possível para a simbologia divina. Para a ideia de Deus, só a copa das árvores é digna. Só a simplicidade vegetal pode suportar a luz divina e transformá-la em alimento.
A rainha fecha os olhos e sente o cheiro das rosas a suavizar o mofo das tapeçarias. O rei acabou de entrar. Ela levanta-se e olha para a boca escancarada dos leões. Porque é que não pode, simplesmente, descansar ali, num daqueles caminhos que apontam para o nada?... Porque a vontade de Deus é esta. Há que aceitar o martírio, para que um dia, do seu corpo, nasçam as rosas da santidade.
"O Figurativo Fugindo do Concreto", de Dudi Maia Rosa, 1980
Cada vez acredito menos em Povos. A cada dia que passa, a cada linha de texto que leio, a cada fotograma e traço que se imprime na tela prateada da minha memória, noto que aquilo que distingue mais fortemente os povos - a sua cultura - não se está a tornar na prevista e propagada monotonia da sombra da Globalização. O povo-papel-químico que prefere comer McDonald's e cerveja em vez de arroz de sarrabulho e alvarinho não está mais pobre culturalmente - provavelmente está até mais rico e até mesmo mais integrado no sistema de metástases ideológicas (vulgo "cancro de ideias") a que se chama "identidade cultural de um povo". O que distingue os portugueses dos outros? Nada. O que é que já nos distinguiu dos outros? Nada. Nem na mediocridade, nem no valor, nem nos desejos. Somos tão medianos quanto um bocejo. Com tanta variedade num tão pequeno espaço, acabamos por julgar que a freguesia ao lado é estrangeiro. Somos tão pequeninos e acanhados, que até o vizinho do lado, que come mais ou menos o mesmo que nós, fala com o mesmo sotaque, ouve as mesmas músicas pimba, lê o mesmo jornal que nós (a Dica da Semana, claro, que até tem uma secção de anedotas) e vê a mesma novela da TVI é considerado estrangeiro. Em Carvalhal, Abrantes, na minha terra de nascença, os vizinhos do lado eram brasileiros, e a parte noroeste da rua, onde vivia, num alto sobre as ladeiras recortadas por pinheiros era conhecido como o cabeço da Espanha. No Alentejo, tirando Mértola, onde o pessoal comia pipas à espanhola e ignorava que existissem outras terras além dos seus acanhados montes de xisto, não há terra ao lado que não seja Marrocos. Vindo eu desaguar em Guimarães, neste caminho que leva ao mar (Via Maris), pensando estar a fincar os pés no Berço da Nação, descubro que é tudo um mito (e em Portugal, o que é que não é mito?) e que, segundo alguns bracarenses, estou em Espanha. Nasci no cabeço da Espanha (nasci mesmo, com parteira e tudo, nada de brancuras de hospital) e venho assentar arraiais entre espanhóis. Tenho para mim que é dor de cotovelo. Nada contra Braga. Mas duvido que em Braga se viva a comunidade como em Guimarães. Não conheço gente mais unida e solidária no bem e no mal que a de Guimarães. Mas estou a fugir ao tema: o que mais distingue os portugueses dos outros povos é a nossa pertença ao mais ínfimo pedaço de terra e o horror a tudo o que está além do limite do campo de milho onde comemos o farnel mais longe de casa (conhecem aquela cena do Sam, do Senhor dos Anéis, a caminho de Bree, logo no início do primeiro volume? Seremos Hobitts?). Não somos portugueses por termos ânsias de navegar em direcção ao desconhecido. Somos portugueses porque o desconhecido parece ser preferível à terra do lado. Estamos em todo o lado porque o nosso pedaço não nos comporta e o pedaço do lado nos repele. Somos o que somos porque não aguentamos aqueles que mais parecidos são connosco. Somos todos, ou quase todos, profetas. E quase todos limpamos o pó das sandálias à saída da nossa terra.
Enriquecemos o mundo com uma panóplia interessante de tons de pele e humores vadios. Foi o melhor que fizemos: gente. Geralmente preguiçosa como nós, com diversas matizes de preguiça. Fomos tristes, continuamos tristes, melancólicos. Só um copo de vinho rasca, de aguardente ou de cerveja com nome estrangeiro (no Norte) ou com nome de cabo (no sul) nos consegue animar.
Somos, portanto, um povo de nostalgias a quem a terra repele. E repelindo-nos a terra, resta-nos o mar. Não que seja coisa que o português histórico amasse ou pela qual ansiasse. Não era o mar que nos chamava, mas a terra que nos vomitava. Não éramos o olhar esfíngico e fatal de um rosto virado a Ocidente. Mas seria bom que esse fosse um programa a seguir, já que andamos tão interessados em saber quem somos graças ao palhaço do M grande. Estava há dias a voltar de Ponte de Lima, e comentei com a Carla que o M luminoso bem podia estender a sua aura protectora sobre o monte da Penha - o primeiro vulto ponteado de luz a indicar-nos a aproximação de casa. Perderíamos, por acaso, o bolo com sardinhas fritas e a malga de vinho verde à sombra dos penedos do tecto de Guimarães? Não. Tenho para mim que ganharíamos uns desfiladeiros mais limpinhos, libertos de caca e cacos. É que esta terra repele-nos porque, de facto, a enchemos de caca e de cacos. Mas veio o fantasma da Globalização e o pessoal começou a temer pela integridade da sua identidade. E, claro, como poderemos fugir à nossa identidade universalista, aberta ao desconhecido e ao escorbuto? Enchemos o mundo com os nossos ossos. A nossa Pátria não é a terra que não nos quis, nem a terra que não nos recebeu. Ficámos onde? No mar. Não porque nos chamasse, mas porque de nós zombava. Porque nos queria engolir numa catástrofe atlântico-trágico-marítima e foi preparando o grande banquete com alguns pequenos aperitivos. Deu-nos a ilusão de grandeza. Deu-nos a ilusão de heroísmo, de força, de vontade, quando tudo era coacção e repulsa. Fomos inseminando ventres definidos por terras acolhedoras que a nossa benévola ignorância apenas sabia desejar, sem compreender. Foi este mar da frente que nos serviu de palco. Serviu. Já não serve. Hoje, o mundo está passado a ferro e a água do mar está devidamente liofilizada para nossa conveniência.
Não somos, pois, gente de terra. Nem, muito menos, nos corre o mar nas carótidas. Mas se houver lugar (físico) no mundo a que possamos chamar Pátria, esse lugar é o Atlântico. Não o Mediterrâneo de onde vêm algumas longíquas influências genesíacas, mas o Atlântico, mar de promessas e sussuros mentirosos. O Mediterrâneo é um mar de baptismo, mítico, religioso, solar. O Atlântico é um mar de desafio, um mar político, mentiroso, enevoado, elusivo: generoso e insaciável.
Comecei este texto com a intenção de glosar de forma breve um admirável texto do Paulo sobre o mito mediterrânico, e acabei por perder-me. Típico de um português. Muito atlântico, por sinal. Fica aqui a promessa de voltar ao assunto, sem esperança de voltar a casa.
"Rosas", roubadas ao Joaquim Alves, que foi, até hoje, a única pessoa a dedicar-me um poema. Retribuo hoje o gesto.
Disse-me que os sonhos são daltónicos não sei se por causa da cor que não têm se por causa das cores que têm e que eles eles não mas nós sim vêem ou não porque alguns versos são daltónicos a falta de vírgulas compromete a absorção e decodificação de alguns comprimentos de onda
Disse-me que os sonhos são daltónicos e que isso é evidente e-vidente talvez sejam visões virtuais talvez não ponto final
Disse-me que há que sonhar até ao suspiro final todos os dias há então que tomar nas mãos o barro e deixá-lo cozer no fogo descolorido dos sonhos condensados em eternidade no fundo da púcara do espanto que reflecte as estrelas
Canto de Amor e Morte - ou porque é que gosto do Harry Potter
Excerto de "Love and Death" de Woody Allen.
Todos os livros que contam histórias, contam histórias de amor. Posso não aguentar com um romance da Barbara Cartland porque o amor que nos vende através das suas páginas não esconde os aditivos receituais da sua prateleira de vidrinhos coloridos, porque nada mais há nesses romances além de fórmulas gastas sobre o desejo, paixão e amor. Posso não aguentar com um livro do Paulo Coelho, porque os seus vidrinhos, ainda que enriquecidos por um leve (muito leve) perfume alquímico, continuam a ser compostos de vacuidade. Vacuidade relativa, mas que não deixa de ser vacuidade absoluta para o espírito que nada encontra nas suas páginas além da aridez de palavras que nada acrescentam ao seu Universo. Por isso, se há gente que se deixa elevar pela escrita de Paulo Coelho é porque tal escrita acrescenta (ou dá a ilusão de acrescentar, que é o máximo que se pode pedir à arte ou a qualquer outro esforço humano) alguma coisa ao Universo de tal gente. Se não me eleva a mim, não é porque eu esteja em lugar mais sobranceiro que o vulgar comprador de bestsellers, mas porque o meu Universo prescinde de Paulo Coelho. Mas não prescinde, por exemplo, do Harry Potter, apesar de ser também um bestseller. Muitos dos leitores deste blog referem que não compreendem a reverência de muita gente, como eu, a este produto de massas. Podem considerar que estes livrinhos são compostos por uma sucessão de fórmulas onde se misturam universos prescindíveis, personagens prescindíveis, histórias que nada acrescentam aos nossos mundos particulares. Poderá ser assim para muita gente, não para mim. E não é porque o meu Universo pessoal seja de pior qualidade que o destes leitores. É apenas diferente. Mas será sempre sob a cúpula estrelada do meu pequeno mundo que qualquer comentário meu poderá alguma vez ser compreendido. Quem lê o meu blog sabe que, tendo eu tempo, escrevo, essencialmente, a respeito de gostos, de preferências, de impressões. E de amor. E de morte.
E se gosto da obra de J. K. Rowling é, exactamente, porque me ofereceu, numa tessitura facilmente assimilável por leitores juvenis, algumas das mais belas passagens que a literatura alguma vez me poderia oferecer sobre a fatalmente poética ligação entre amor e morte.
A maioria das obras de literatura juvenil da actualidade prefere refugiar-se num mundo Waltdisneyzado onde a dor é sempre ultrapassável pela possibilidade de um final feliz. Os contos dos Irmãos Grimm já eram eivados o suficiente de morte - mas faltava-lhes o amor. Não tenho a menor dúvida de que qualquer escrita para a infância deve encarar os fantasmas de frente. Rowling teve a ousadia de trazer para a literatura juvenil a inevitabilidade da tragédia, mesmo no mais feérico dos mundos.
Logo no primeiro volume, frente ao espelho que retorna os mais profundos desejos, Harry vê-se ao lado dos seus pais, mortos pouco antes do início da narrativa. Num texto de pura ternura, perante uma felicidade puramente virtual, que se torna em obsessão furtiva que se desvanece com um fechar de olhos, no espaço vazio da solidão mágica de Hogwarts, Harry recebe um conselho de prudência de uma personagem que manterá ao longo dos volumes uma aura de simultâneo heroísmo e inutilidade, Dumbledore: por mais consoladora que seja a fantasia, a verdadeira felicidade nunca prescindirá da dor nem do sacrifício; a verdadeira felicidade necessita da autenticidade que só a morte dá. Perante a inevitabilidade da morte, há que se lhe dar o sentido do amor.
Outra passagem, no último volume, mostra-nos Harry, pela primeira vez, frente ao túmulo dos pais, a rever, alterada, deturpada (ou depurada?) a mesma imagem do espelho dos desejos na realidade estéril dos despojos mortais paternos, vazios de significado e que as palavras gravadas no mármore tentam transfigurar em eternidade: "'The last enemy that shall be defeated is death'"...
" The empty words could not disguise the fact that his parents' moldering remains lay beneath snow and stone, indifferent, unknowing. And tears came before he could stop them, boiling hot then instantly freezing on his face, and what was the point in wiping them off or pretending? He let them fall, his lips pressed hard together, looking down at the thick snow hiding from his eyes the place where the last of Lily and James lay, bones now, surely, or dust, not knowing or caring that their living son stood so near, his heart still beating, alive because of their sacrifice and close to wishing, at this moment, that he was sleeping under the snow with them."
A força desta obra de literatura vai, contudo, além desta poesia que revela aquilo que já sabemos através de palavras que nos enganam com uma sensação da novidade. Não é a poesia outra coisa. Ninguém lê na poesia coisas que não saiba. As notas de rodapé são a morte anunciada de qualquer poema, porque pretendem informar, desvelar de fora para dentro, quando a poesia só pode viver fazendo o caminho inverso. A poesia serve para confirmarmos as nossas certezas íntimas com a ilusão de uma revelação. Porque revelações, de facto, não existem, a não ser nos primeiros anos das nossas vidas - até ao dia em que ficamos a saber que um dia morreremos e que isso é bem claro e definitivo nos olhos de quem nos dá a notícia.
Poderia ainda falar dos jogos de palavras, anagramas e piscadelas de olho mais ou menos (quase sempre mais que menos) eruditas com que a autora salpica cada elemento superficial destes romances: os jogos de quidditch, as guloseimas com sabor a cera de ouvidos, os retratos vivos que cobrem as paredes de Hogwarts, as mandrágoras que gritam de dor ao serem desenterradas... Mas isso são meras distracções copiadas do nosso quotidiano cultural mais vulgar, superficiais e voláteis, como sorrisos cintilantes de sol sobre a superfície aquática do mais negro abismo.
Não tenho dúvidas que haverá sempre alguém que não verá nada disto nesta obra... É pena? Não sei. Talvez não. Dá-me a sensação egoísta que o usufruto privado de uma obra de arte poderá dar a um coleccionador milionário. Dá uma certa vontade de sibilar em serpentês palavras que só nós e os répteis poderemos alguma vez partilhar. Todos vivemos, simultaneamente, em vários círculos. Estou grato à J. K. Rowling por ter entrado neste.