Bráulio e Santo Isidoro de Sevilha - Meister des Codex 167
Continuando as respostas ao Hélder Beja:
- Considera ter os conhecimentos suficientes para participar na feitura de uma "enciclopédia universal"?
Ninguém tem conhecimentos suficientes para escrever uma enciclopédia universal. E a Wikipédia não é uma enciclopédia universal. Eu mesmo não considero a Wikipédia uma enciclopédia. Como já referi atrás, a Wikipédia é um recurso de conteúdos livres, constantemente em actualização e em debate, além de estar sempre vulnerável a vandalismos de ordem vária. Por isso, é absurdo imaginar a Wikipédia como fonte bibliográfica para um estudo sério. Mas, e puxando a brasa à minha sardinha, se alguém quiser começar a estudar, por exemplo, os afídeos, encontrará na Wikipédia um texto que é, provavelmente, o mais completo sobre o assunto publicado na Internet em língua portuguesa. Eu sei que esse artigo foi escrito por mim com toda a seriedade, baseado em fontes bibliográficas que estão discriminadas no próprio artigo. Um estudante que pegue naquele texto, não vandalizado, terá uma excelente base de apoio para um estudo próprio que deverá ser apoiado por investigação em outras fontes bibliográficas. Há quem veja a Wikipédia como uma inimiga dos suportes bibliográficos tradicionais. Isso é uma estupidez. A Wikipédia, bem usada é, antes, uma enorme aliada dos suuportes bibliográficos tradicionais porque a Wikipédia exige uma leitura crítica. A Wikipédia não serve a papinha toda feita, como alguns críticos dizem (e mal). A papinha da Wikipédia está tudo menos pronta para consumo imediato – exige reflexão, consulta de fontes alternativas, confrontação de dados. E, claro, o melhor meio para isso será contribuir para a própria Wikipédia, melhorando os textos (a nível ortográfico, de organização e a nível da própria informação veiculada) e participando na discussão dos artigos. Cada artigo tem na parte superior uma aba que diz "discussão" onde podemos criticar o artigo e propor melhorias ou justificar as melhorias que fizemos no artigo. Claro que, por vezes, aquilo que consideramos melhorias é visto como vandalismo por outros utilizadores que se poderão sentir lesados nas suas crenças ou opiniões políticas devido ao conteúdo dos artigos. Nesse caso, a discussão dos artigos serve como excelente meio de diálogo e de "negociação da verdade". Esta "negociação da verdade", que tanta comichão provoca num dos meus colegas Wikipedistas, é na verdade, a essência política da Wikipédia. Muitos críticos chamam-na de "marxismo cultural" ou, simplesmente, da ditadura do "politicamente correcto". Na minha visão das coisas, a Wikipédia terá, de facto, de ser sempre politicamente correcta porque pretende ser objectiva, limitando-se aos factos. Para isso é necessário encontrar uma formulação textual que agrade a Gregos e a Troianos – o que é difícil e, mais que isso, um processo que nunca acaba. Basta verificar o histórico dos artigos sobre religiões. Alguém insere uma crítica ou acusação a essa religião e outra pessoa apaga essa crítica. Discute-se o assunto com muitas reviravoltas e ânimos exaltados - como acontecia, aliás, quando não existia ainda Wikipédia: a diferença é que na Wikipédia, se os utilizadores estão de boa fé, estão interessados realmente em encontrar uma solução de compromisso. A maior parte das vezes, o texto fica um pouco estropiado e instável, alternando o ataque com a defesa de determinadas opiniões. Muita gente critica esse estilo atabalhoado de muitos artigos da Wikipédia. Isso seria, de facto, criticável, se o texto da Wikipédia fosse um artigo literariamente acabado. Não é. Estamos perante um processo. E como os conteúdos da Wikipédia são livres, todos são livres de pegar nesses textos e, publicando-os ainda em GFDL (que permite a alteração dos conteúdos e o seu uso comercial), de escrever um artigo, publicado noutro local qualquer, onde se poderá dar a coerência de conjunto que tanta gente valoriza. Eu, por mim, preferirei sempre o texto atabalhoado, não fixo, da Wikipédia, porque na Wikipédia o texto funciona como um organismo vivo sujeito a mutações e a metamorfoses, a doenças e mesmo à extinção – mas também ao amadurecimento, ao desenvolvimento e à disseminação. E todos têm acesso a essa história de cada artigo: basta carregar na aba superior, acima de cada artigo, para esse efeito. Claro que isso exige tempo. É que a Wikipédia, sendo um produto da Internet e da "rapidez" do fluir da informação é, paradoxalmente, um excelente meio para a valorização da leitura lenta, crítica e atempada. Claro que uso frequentemente a Wikipédia para encontrar alguma informação que me seja necessária no momento, sem grandes preocupações de rigor, dependendo do objectivo que tenho na altura. Por exemplo, para me informar sumariamente sobre quem foi uma pessoa, a Wikipédia pode servir perfeitamente para me informar. De facto, até as fontes bibliográficas tradicionais têm erros – e muitos. Aliás: quando estou a escrever artigos para a Wikipédia é que me apercebo da quantidade de erros que existem em livros de autores conceituados. O que é ainda mais perigoso que encontrar um erro na Wikipédia, porque aí, o erro passa a ter autoridade por ter sido escrito por alguém que tem essa autoridade. Enquanto que se eu disser que uma determinada informação foi retirada da Wikipédia, o meu interlocutor pensará duas vezes antes de acreditar. Isso não é mau. É muito bom. É por isso que continuo a defender que a Wikipédia deve continuar a poder ser escrita por todos – e, principalmente, por aqueles que ainda estão, assumidamente, num processo de formação (os alunos do ensino básico, por exemplo). Os utilizadores formados academicamente serão, com certeza, uma mais valia para o projecto – mas serão ainda mais se aceitarem esse carácter universal do escritor da Wikipédia. Uma enciclopédia onde Freud não teria, nunca, a primazia para escrever um artigo sobre a psicanálise, porque o objectivo aqui não é dar voz aos autores consagrados em determinada área, mas voz aos leitores – a todos os leitores, até àqueles que escrevem mal e que interpretam mal o que lêem. Na Wikipédia estamos sempre a ler "leituras" pessoais. Quem não tiver a abertura de espírito para compreender o que isso é não deve utilizar a Wikipédia, porque não saberá o que está a fazer.
E uma mãe assou
E comeu o seu querido filho:
“Olha nos meus olhos, mãe.
Aprendi a lei com eles
Olha a minha testa, mãe.
Já nela enverguei filactérios
Olha a minha boca, mãe:
Aprendi a lei com ela.”
… baseada nas “Lamentações de Jeremias” é de uma doçura a toda a prova, apesar dos versos macabros que a originam.
Outra canção, Wa Habibi (Meu amor, em árabe)…
Meu Amor, Meu Amor
O que te aconteceu?
Quem te viu e quem por ti sofreu,
Por ti, que és justo?
Meu Amor, qual a culpa dos nossos tempos e dos nossos filhos?
Permanecem sem cura, estas feridas.
… alterna, da mesma forma, com um sentido dramático deslumbrante, a lamentação de uma melodia da Semana Santa do cristianismo árabe com a mais desenvolta e sensual dança oriental. De seguida, num trabalho de colagem sonora, volta outra canção da Semana Santa:
Choram sem parar os meus olhos
Porque não terei descanso
Até que Deus a si se revele e olhe do céu.
Fiz subir as minhas preces em Teu nome,
Ó Deus
Não afastes os teus ouvidos
Ouve a minha voz e vem agora.
A primeira canção do ciclo, “Mañanita de San Juan”:
Na manhã do Dia de S. João
Mouros e Cristãos foram à guerra
Em combate, foram morrendo
Quinhentos de cada lado.
O almirante Rondale,
Ficou, então, cativo.
Quebrada a sua espada, a meio da batalha
Viu-se prisioneiro e começou a chorar.
A princesa, ouvindo-o do alto do seu castelo:
“Não chores, Rondale, não sofras
Dar-te-ei 100 marcos de ouros
E tudo o que quiseres,
Casando comigo, meus vinhedos e riachos.”
“Possa o fogo maldito devorar-te as vinhas
Os riachos e tuas casas
Tenho uma mulher em Paris: é com ela que caso”
Ouvindo isto a princesa,
Teve-o, morto.
… baseia-se num Romance tradicional sefardita. Diz a capa do CD que a tradução é de Hamete Benengeli, o que pressupõe ser o próprio Golijov num processo de mistificação narrativa, da mesma forma que Cide Hamete Benengeli não era mais que o fictício autor das aventuras do Engenhoso Dom Quixote de La Mancha. O espírito orientalista, esteticamente modificado e apropriado por Golijov, à maneira daquela personagem Byroniana do conto de Edgar Allan Põe com que dei início a este meu blogue:
“Sonhar, continuou, retomando o tom do seu diletante colóquio, enquanto levantava até à soberba luz de um incensório um dos seus magníficos vasos - sonhar tem sido o motivo da minha vida, por essa mesma razão tenho eu fundado para mim mesmo, como pode ver, uma clareira de sonhos. No coração de Veneza poderia eu ter erigido algo melhor? Vê à sua volta, é verdade, uma miscelânea de adereços arquitecturais. A castidade jónica é ofendida pelos temas antediluvianos, e as esfinges do Egipto estendem-se sobre tapetes de ouro. Apesar disso, o efeito é incongruente apenas para os acanhados. A harmonia de estilos locais, e especialmente temporais, são os fantasmas que aterrorizam a humanidade, desviando-a da contemplação do sublime. Eu mesmo já fui um decorador segundo os preceitos do bom gosto; mas essa sublimação do ridículo enfadou-me o espírito. Tudo isto é agora o que melhor se ajusta ao meu propósito. Como estes incensórios cheios de arabescos, o meu espírito contorce-se em fogo e o delírio desta cena enforma-me nas visões selvagens dessa terra de sonhos reais para a qual estou agora a partir.”
De facto, sou incapaz de ouvir esta obra de Golijov sem evocar o ambiente de sonho antes do encontro definitivo – onírico, sem ser surreal. Apenas sublimemente incongruente como os pregões sefarditas com que se compôs a primeira canção. Apenas revelador de um desejo de quebrar os muros que encerram a terra e que almejam limitar o próprio céu.
A terceira canção, “Tancas Serradas a Muru”, com letra e música de Francesco Ignazio Mannu (Sardenha, ca. 1795):
“Cercam os muros a terra
Tomada em voraz avareza,
Fosse o céu aqui também
E seria da mesma forma cercado!”
... e a quinta canção pegam novamente no tema dos limites, das cercas e das portas, mas sob o ponto de vista dos indefesos e dos traídos. Como é habitual nas canções de embalar, o propósito não é apenas o de adormecer mas o de confessar à criança, que não entende, tudo aquilo que atormenta o coração de quem o embala, como que pedindo vingança e salvação àquele que agora se protege. É este um dos arquétipos dos nossos mitos universais, que em vez de afastar os papões dos telhados, apenas os convocam para o espírito do infante que, de outro modo, desconheceria a sua existência. Pela mesma mítica mão de Benengeli:
Dorme, meu filho, dorme…
Dorme, maçã do meu olhar.
Antes que chegue o teu pai,
De ânimo exaltado.
Abre a porta, mulher,
Abre a porta
Que venho cansado
De lavrar os campos.
Não ta abrirei
Porque não estás cansado.
Sei bem que vens
Da casa da tua nova amante.