Segunda-feira, 7 de Maio de 2007
Escrito em granito

Wikipedistas na varanda dos namorados, na Penha. Eu não apareço. Eu estou aqui (sou o segundo a contar da esquerda - o do sorriso parvo...)

Foi a primeira vez em que vi, em carne e osso, pessoas que, tal como eu, se dão ao trabalho de acreditar que até uma caixa de areia pode ser um livro. Fui eu que os influenciei a encontrarem-se em Guimarães. Fui eu quem fez a reserva no Etc, já de olho na sobremesa de todas as combinações. Não fui o primeiro a chegar. O Dantadd, que afinal não se chamava Dantas, mas Daniel, já estava a postos nos degraus de granito da Igreja de São Gualter, que se lê São Gualtér e não São Guálter, como mandam os dicionários onomásticos. A Igreja de São Gualter, como é conhecida por quase todos os vimaranenses, é conhecida pelo IPPAR e historiadores afins como Igreja dos Santos Passos ou Igreja de Nossa Senhora da Consolação. Grande treta. É de São Gualter e mais nada. Um santo que foi enviado aqui para as redondezas por São Francisco de Assis e que teria, entre as suas capacidades milagrosas, a de tirar os cornos ao próprio diabo e a quem mais os viesse a ter, desde que lavasse as frontes na fonte santa de Urgezes, onde o santo teria lavado as chagas dos pobres de Cristo. A Igreja, a última da lavra de André Soares, arquitecto bracarense que também nos deixou a Igreja dos Congregados e o Palácio do Raio, na cidade dos Arcebispos, bem como a igreja de Santa Maria Madalena, na Falperra, junto ao quecódromo de Santa Marta, é uma Igreja de fachada ondulada, como se o granito conseguisse tornar-se líquido e dispersasse a ondulação na vertical - como quase tudo o que foi disposto por este arquitecto do feldspato acinzentado. O Dantadd, vindo de Vigo, lá estava, sobre a escadaria cenográfica do século XIX, a indagar se apareceria alguém. Fui o segundo a aparecer, depois de subir escadinhas também de granito junto a casas com colchas à janela, a aproveitar os primeiros raios de sol da Primavera. Depois, veio o Manuel de Sousa, o António e o Gil, do Porto; o Waldir, de Viana do Castelo - mas com o coração em Cabo Verde. Finalmente, o meu conterrâneo, Luís Grave que, sempre tendo assinado como Lgrave, julgava eu que fosse "L-greive" (L-sepultura???)... "São da Wikipédia?" - iam perguntando. Éramos. Somos. Da Wikipédia. Da caixa de areia.

Jesus Cristo escreveu uma vez (ainda que a passagem seja apócrifa, é certo) no chão, na areia. Mas apagou o que escreveu logo a seguir. Não deixou a olhos indiscretos as letras escritas pelos seus próprios dedos - um pouco como Hamlet a reduzir a words, words, words, o livro que lia. Dizem alguns que foi Ele (Jesus, antes de ter nascido em carne em osso) quem escreveu, a fogo, no granito do Sinai, os dez mandamentos. Esses, ao menos, foram lidos por olhos mortais. Mas desapareceram, algures, à espera de um Indiana Jones que os resgatasse de uma Arca Perdida vigiada pelo Anjo da Morte. Jesus Cristo não era Wikipedista. Não foi em nome dele que nos juntámos na escadaria de São Gualter e que seguimos em direcção ao Etc, onde comemos plumas de porco preto e posta charolesa, vinho verde e coca-cola e uma sobremesa heterogénea como o granito de André Soares. Subimos, depois, à Penha, pelo teleférico. Subimos ao quecódromo (já é a segunda vez que utilizo o neologismo...) do Pio IX, não sem antes passarmos pela varanda dos namorados, apertada entre o cao de blocos que pende sobre Guimarães, a Roma sem Papa, Sé sem Bispo, Gente sem lei, Ponte sem Rio...

Das conversas que tivémos pouco mais ficou que meia dúzia de palavras e a promessa de nos encontrarmos de novo, em Gaia, junto às caves do Vinho do Porto. Do encontro ficou o alívio de vermos que os nicks e os comentários mal humorados das páginas de discussão da Wikipédia são escritos por pessoas que não querem escrever em areia, mas em granito. Como o André Soares. Abençoado seja...
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publicado por Manuel Anastácio às 22:43
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Domingo, 6 de Maio de 2007
De olhos bem abertos

Sawyer vs Sawyer, Lost

Como para qualquer cinéfilo, a sala de cinema é, para mim, sagrada. É um espaço que não se limita a projectar imagens em maior escala e com som de boa qualidade. A entrada na sala, as cadeiras vagas, os namorados, as crianças que entram sem qualquer preocupação num filme para maiores de 16, o tipo que atende o telemóvel, a mulherzinha que decide partilhar os seus comentários com toda a plateia... Lembro-me de uma, no velhinho Teatro Rosa Damasceno, em Santarém, a gritar para a Jenny do "Forrest Gump": "Não! Não saltes!..." quando a personagem quase cai, pedrada de todo, de uma alta varanda; ou quando decidiu explicar ao pessoal todo, desde o primeiro balcão até aos lugares da frente da plateia: "aqueles passarinhos são ela!... A reencarnação...", tornando cómicos, para toda a gente, aqueles episódios de lágrima fácil ao canto do olho. Na sala de cinema, o filme é constantemente profanado pelos risos dos insensíveis, pela alta cabeleira à Marge Simpson do tipo que se sentou à frente... Mas é, igualmente, profanado pelos lugares vagos, como quando vi, sozinho, no mesmo Rosa Damasceno, o "Viagem ao Princípio do Mundo", de Manoel de Oliveira. De facto, para se ver o filme enquanto filme, e não enquanto objecto ritual, não há coisa melhor que vê-lo em casa. E para quem tem um bom sistema de imagem e som (luxo que não existe em minha casa), isso é ainda mais verdade. Mesmo uma televisão, das velhinhas, pode bem tornar um filme em mais que um filme - num confidente perante o qual podemos reagir sem medo do ridículo. É certo que, tal como o vídeo, que matou a estrela de rádio, a televisão também quase matou o cinema. Agora, já não é a televisão a culpada - existem outros monstros, como a pirataria via internet, ainda que sobre as costas de um burro expiatório - ou será uma mula?...


Jane Wyman reflectida na televisão, em "All that heaven allows"


A televisão é um instrumento diabólico, é certo. É um formatador de cérebros. Apaga, em grande parte, a capacidade crítica. Doutrina as massas através de programas de fácil digestão - ou que pelo menos disso têm fama... A cena, em "All that heaven allows", em que Jane Wyman, viúva, recebe uma televisão de presente de natal do seu filho, depois de ter passado todo o filme a dizer que não queria televisão alguma, já que tinha coisas melhores para fazer, é uma das imagens mais calcinantes da reacção do cinema a um electrodoméstico cuja principal função é domesticar-nos. O facto de a actriz, exposta à sua solidão e estúpida abnegação, aparecer reflectida no ecrã, com um laço  vermelho sangue ao canto, não é apenas um virtuosismo melodramático. É um manifesto pela liberdade. Mas a verdade é que vi este filme na televisão. A verdade é que quase todos os filmes da minha vida foram vistos na televisão. Nessa caixinha estupidificante. Como qualquer coisa, tudo depende da forma como se utiliza. Se é para vermos doses maciças de Morangos com Açúcar, estamos mal. Se é para vermos um filme do John Ford, ou mesmo de  Kieślowski, a televisão passa a ser uma vitrine de angústias e alegrias que muitas vezes nos salva a vida, ou justifica-a. Nem todos vivem a meia dúzia de passos da Cinemateca - ou mesmo do Cineclube de Guimarães e das suas sessões no Palácio Vila Flor.


Lost

Ao listar no processador de texto todos os filmes que me acompanharam, não foram poucas as vezes em que tive a tentação de incluir aí um filme que ainda não vi na totalidade. Chama-se esse filme "Lost" - "Perdidos" - e, independentemente de ser uma série de televisão e não um filme, atrevo-me a dizer que é um belíssimo exercício de cinema. A complexidade desta série leva às últimas consequências a forma narrativa consagrada por Quentin Tarantino em "Pulp Fiction", reflecte a angústia das relações familiares com a mesma empatia da "Sonata de Outono" de Bergman, dá-nos uma explosão de verde perdição como no "Apocalipse Now" (são inúmeras as vezes em que a loucura das personagens aparece fenestrada por caules de bambu), troca-nos as voltas como no "Sexto Sentido" de Shyamalan, arrasta-nos para uma realidade com semelhanças aos arquétipos de Tex Avery, expõe-nos a um estranho caminho que, por vezes, parece tão banalmente fantástico quanto o percorrido pelo carteirista de Bresson, corta-nos as vasas como num filme de John Carpenter, arranca-nos as entranhas à alma como num melodrama de Lars von Trier... E podia continuar. Cada episódio que passa é uma pérola de sensibilidade embrulhada na mais lustrosa capa do entretenimento. E como qualquer fã da série, só temo o final que será, inevitavelmente, decepcionante. É impossível sair-se de pé depois de tantas cambalhotas. Mas, ainda assim, que belas cambalhotas!...


Lost

O conjunto de referências que enxameiam a série, com personagens cujos nomes remetem para filósofos e figuras da literatura e mitologia universal, tornou mais claro o padrão que pauta a vida de cada uma destas figuras unidas pelo fantasma do parricídio e pela via sacra da Fé. Sawyer, que não se chama Sawyer, num navio negreiro do século XVIII, descobre o verdadeiro Sawyer, que continua a ser um falso Sawyer - e, perante a insensibilidade do homem que levou o seu pai ao suicídio, sacrifica-o à Ilha, essa entidade viva fora do mundo sensível mas que dele se alimenta com a voracidade predadora da mais palpável existência. Essa Ilha que, pressinto eu, não é mais que a tela feita e desfeita por Penélope, usando as linhas roubadas do cesto das Parcas e urdidas com o mesmo desvelo mutante de uma Aracne metamorfoseada. Assim como viemos dar ao mundo, assim abrimos os olhos, como Jack, na primeira imagem do primeiro episódio. Com terror da luz, depois das trevas.


Lost
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publicado por Manuel Anastácio às 16:28
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Quarta-feira, 2 de Maio de 2007
Mies e o Tempo

Mies, o "meu" gato, no meu ombro. Atitude em Creative Commons...

Por falta de tempo, como se o tempo faltasse, porque o tempo não falta, nem sobra, é apenas... Por falta de tempo, não dou ao tempo um segundo de reparo. Não me sento frente a ele e ponho-me com ele a falar. De facto, sendo a abstracção mais conhecida do ser humano - não há quem não o conheça - ainda que ninguém o conheça de facto - ou, pelo menos, da mesma maneira - o tempo bem podia sentar-se aqui ao meu lado, em amena cavaqueira, como outras abstracções fazem, amiúde, nos romances de Ballester, Saramago ou outro Ibérico qualquer com o coração além do Atlântico mas com os olhos presos às terras do verde pinho. Enfim, desculpem-me entrar a matar, com frases desconexas ou quase. Mas há momentos em que as frases desconexas ou quase exprimem tudo. Há alturas em que julgamos que somos capazes de escrever o mais belo romance do mundo: e a receita parece-nos tão simples... Basta pôr  lá tudo, tudo mesmo: o Mies a brincar com uma bola de guizos ou a deitar um candeeiro a baixo. O Mourinho e o Cristiano Ronaldo à batatada; com o Ronaldo a sair da mesma com a elegância de um silêncio; e comigo a pensar como isto daria um belo romance à Proust, com os Verdurin à mistura mas, principalmente, com Charlus, Jupien e uma flor à espera de ser polinizada por uma                                  z<aaaaaaaaaaaaaaaa  inverosímil abelha. (o z<aaaaaa foi obra do Mies que decidiu passear em cima do teclado - poeta, o gajo!)...

Seria tão fácil escrever o mais profundo e belo romance do mundo. Bastaria ter tempo e poder dar esse tempo ao próprio leitor. Mas é o tempo que nos possui, não o contrário.

Este texto, obra da desconexão e das unhas afiadas de um gato recém chegado a casa - baptizado de Mies (quando fico zangado com ele digo "Mies! van der Rohe!".... - dá a ideia que o estou a mandar ir para a rua, coisa que não farei, até porque ele não tem chave para poder voltar a entrar - eu também não tenho, mas isso é outra história que também deveria aparecer para que este post pudesse ser o gérmen do romance do século XXI...), é um texto de retalhos. Não tenho tido tempo. E da última vez que tentei escrever um post, a net pifou e julguei que o que tinha escrito na caixa de texto tinha ido irremediavelmente abaixo. Estava eu a desfiar memórias à Proust, com a casa dos Pichas por fundo e pum - foi-se tudo. Coisa que não acontecia com as máquinas de escrever mas que acontece amiúde no éter da informática. Depois de alguns dias sem tempo para escrever o quer que fosse, nem para ler uma linha que seja - ainda que não me faltem coisas para falar, como o "encontro" de wikipedistas em Guimarães - hoje abri a área de gestão do blog e descubro que, agora, os textos perdidos são recuperados!... E senti Proust de novo a reencontrar o Tempo!...

E repego no texto que tinha começado a escrever, depois de ver a Ana Malhoa - não é cantora que preze, mas não é isso que interessa agora - na televisão, a falar da sua mãe, nascida na mesma terra que eu, criada na casa dos ditas-cujas:

" O autocarro parava em frente de uma vidraça de loja, no café da Portela, onde lia, aí reflectido "aramac lapicinum ed laodras". Parecia latim ou élfico superior. Depois, seguia por uma curva, ao lado da loja do pai do Americano, e com um eucalipto esguio - o último de um renque e que foi poupado para servir de ponto de referência a quem chegasse à terra, de modo a poder dizer: aqui, junto a este eucalipto cujos ramos baixos foram podados, para acentuar o perfil fálico, está a casa dos Pichas... "

Não continuo o texto. Fica assim. Repego-o noutra altura. O Mies, cansado de derrubar colunas de som e de roer as revistas de arquitectura da Carla, está a dormir no meu colo com o ar nostágico que só os gatos podem ter. A nostalgia dos cães é diferente. Mas o Mies, que bem se podia chamar Camões, com o seu olho magoado, baço, ferido sabe-se lá em que batalhas ou degraças felinas afins à Condição Humana, tem o coração a bater a muitos à hora. Hoje à tarde vi-o a olhar através da varanda, expectante. Sem se preocupar com o Tempo, ou sem saber que ele existe, ou sem duvidar que possa existir, mas expectante. O tempo, aquele que nos faz parar o coração definitivamente, como fez ao coração de que falaria no final daquele texto que não terminei. O coração da Aurora dos Pinheiros - minha avó. Fica para outra altura. Por enquanto, basta sentir o coração desconexo do Mies. Não há texto que possa descrever ou condensar poeticamente o bater de um coração que persiste nesse movimento - nem que seja apenas de um gato.
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publicado por Manuel Anastácio às 21:27
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