Quinta-feira, 30 de Novembro de 2006
Curta 9

- O pessoal tem a mania  de chamar neve à geada.

- Sim?

- Quando, de facto, a geada forma-se a partir da solidificação do orvalho resultante da condensação do vapor de água. Em contacto com superfícies frias, o vapor de água perde energia e passa directamente ao estado líquido sobre as folhas das plantas ou sobre os vidros frios, e depois, congela...

- Sim?... Sabes, está interessante a conversa, mas tenho de ir para dentro... Está a cair uma orvalhada e não tenho tempo para ficar doente.

- Tá... Fica bem.

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publicado por Manuel Anastácio às 10:30
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Curta 8

- É muito frequente confundir-se inteligência com conhecimento.

- É verdade. Diz-se da população portuguesa que é pouco inteligente, quando ela é, na verdade, apenas pouco culta.

- Quem diz isso é muito pouco inteligente.

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publicado por Manuel Anastácio às 10:25
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Sexta-feira, 24 de Novembro de 2006
Professores I

Pormenor de "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch (1450 – 1516) - Museu Nacional de Arte Antiga

Se o João Sebastião não mereceu, da minha parte, sequer um post (recebeu, isso sim, uma curta), dei comigo a pensar: está mal que ele tenha uma referência neste meu "diário" enquanto que os outros professores não têm direito, sequer, a uma leve menção. Ora comecemos pela primeira e segunda classe. A minha professora era a senhora Maria José, de Abrantes. Muito gorducha, era conhecida como "saco de batatas". Mas a alcunha maldosa era devida, essencialmente, ao facto de ser reputadamente muito severa. Apesar do 25 de Abril já ter passado há muito, ainda era frequente que os professores da primária da minha aldeia agissem com a ajuda de uma régua de madeira lascada. E ninguém reclamava. Ou melhor, reclamava, mas os professores faziam orelhas moucas e davam outra reguada. E mais nada. Ponto final... Pum. Uma vez, estava ela a passar do lado direito da minha fila (sem que eu o supusesse sequer, já que a sala estava num silêncio sepulcral, deviamente coroado, literalmente, com um crucifixo partido e abananado sobre o quadro preto de ardósia estalada no canto) quando deixei cair a minha preciosa colecção de lápis de cor da Viarco (ou lá o que era, que o dinheiro não dava para Caran d'Ache) e me debrucei para os apanhar. Claro que não sabia, enquanto os meus colegas continuavam a pintar ovinhos, com a língua meio de fora, com o cuidado de não passar do risco, que a professora estava atrás de mim. Debrucei-me para apanhar os lápis e, como na anedota do Taveira, fiquei de rabo para o ar. A professora não gostou do meu gesto indecoroso e puxou-me firmemente a orelha até ter ficado, de novo, sentado no lugar. Maleável e impiedosamente, em segundos, a sala manteve a sua dignidade de Estado Novo, ainda que os lápis se mantivessem pelo chão e as minhas bochechas redondas parecessem explodir de calor, humilhação e uma vontade de dizer que aquele puxão de orelhas era injusto!!! E era! Mas não fiquei traumatizado, descansem. Um puxão de orelhas não traumatiza ninguém, ao contrário do que sustenta a pedagogia oficial em voga. Noutra altura, no entanto, fiquei aliviado com o sentido de injustiça da professora Maria José. Alguém decidiu ficar demasiado tempo na casa de banho depois do recreio  (onde também se guardava, curiosamente, a bandeira nacional, ao lado do papel higiénico - honra seja feita a todos os que fizeram as suas necessidades em frente ao símbolo pátrio sem nunca lhes ter ocorrido qualquer ideia menos patriótica, como aconteceu a todos nós que ali compartilhávamos com as quinas imaculadas as nossas infantis diarreias). Ora, a fila para aquela pequena repartição privativa começou a aumentar e, não sei por que razão, estava tudo apertado. A professora Maria José irritou-se com a demora e mandou toda a gente sentar-se no seu lugar. Eu ficava na fila mais à direita, em frente ao quadro, na terceira fila de trás. Ao lado de uma grande janela onde, um dia, vinda de detrás da grande figueira que dava para o alpendre lateral, bateu uma andorinha que não sabia que existia um material chamado vidro, transparente. Foi ali que vi a primeira imagem do que fosse um campo de concentração. A professora começou no primeiro aluno da fila da esquerda, à frente e foi continuando a distribuir reguadas a todos os alunos. Nunca tinha recebido uma reguada. E aquele silêncio apenas cortado pelo estalar da madeira contra a pele só foi igualado num sonho em que me imaginava num autocarro, com todos os lugares ocupados, que era lentamente devorado por um mecanismo que ia esmagando lugares após lugares sem que os seus ocupantes reclamassem ou tentassem fugir, enquanto que eu esperava, no banco de trás. Lembro-me, no sonho, de uma mulher com uma criança ao colo e que, perante a morte iminente, apenas dizia "ai... ai...". A professora Maria José, depois de duas filas  longitudinais de alunos apavorados ou com as mãos já a arder, cansou-se. Olhou para a terceira fila, onde estava eu, e disse: "amanhã continuo". Não continuou. E foi assim que nunca levei uma reguada.

Pouco mais me lembro da professora Maria José. Mas, curiosamente, não a detesto. Aprendi a ler em dois anos de uma forma eficiente e limpinha. Isso valeu o clima de terror? Para os meus colegas, não sei, não posso falar por eles. Eu, por mim, não me queixo, nem me arrepio quando passo junto ao edifício quadrado e caiado, hoje ocupado por um jardim de infância. Só fico triste quando vejo que a velha acácia, junto à porta, já não existe. Foi cortada porque empatava o trânsito, dizem. Tretas. Sei que as acácias são invasivas e más para as outras plantinhas mas... aquela acácia era boazinha. Não havia o direito. Durante muito tempo era o único sorriso que tinha à entrada da escola. E, por acaso, até era um sorriso amarelo. Maravilhosamente amarelo e com um cheiro que me fez sorrir quando li, em Proust, o episódio de Odette de Crécy na Avenida das Acácias. Por alguma razão se pode aguentar o peso excessivo da escrita de Proust - de facto, creio que gostamos mais de Proust depois de o ter lido, mas depois de gostarmos, ai de quem disser mal!... Sem a professora Maria José não me teria sido possível gostar de Proust. Por isso, obrigado.

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publicado por Manuel Anastácio às 22:48
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Quinta-feira, 23 de Novembro de 2006
Curta 7
Se ele há pessoas de quem gosto muito, também é verdade que há pessoas por quem tenho o maior desprezo. Uma dessas pessoas dá pelo nome de João Sebastião. Um professor de Sociologia (que, infelizmente, foi um dos meus não-professores, já que não me ensinou coisíssima nenhuma) e cuja aula mais comentada foi, de facto, uma vez em que teria estado com a braguilha aberta. Eu, por mim, não me esqueço dos meus colegas a apresentarem trabalhos e ele a desenhar uma espécie de Batman, com uns batsapatos, uma batbicicleta e outras batretas. No final, ainda, teve o mau gosto de deixar a sua obra de arte na sala para que os pobres palestrantes soubessem da atenção que lhes tinha prestado. Um nojo. Na altura, era conhecido no meio educativo como um dos maiores especialistas em cultura cigana - era simples e rasteiro: os ciganos eram sempre bons; nós (ele não incluído, claro) éramos maus porque não queríamos compreender a cultura dos ciganos. Até podia ter alguma razão, mas o seu extremismo e a sua falta de visão preconceituosa levava-o a sobrevalorizar aqueles que ele considerava coitadinhos e a detestar e a humilhar aqueles que ele considerava privilegiados (aqueles que ele considerava, apenas pela "pinta"! Não quer dizer que o fossem de facto). Então como professor, era um vómito: perorava sobre um assunto e pedia opiniões à assistência. Quem tentasse dizer algo de novo ou desenvolver o assunto, recebia o seu olhar de desprezo. Mas ficava deliciado e dizia maravilhas de quem repetia ipsis verbis o que tinha acabado de dizer.

É verdade. À conta disso tive a pior nota que alguma vez me foi atribuída enquanto estudante. Mas devo-lhe uma coisa: tenho o prazer de saber que a minha pior nota foi dada por um ser abjecto que se julga moralmente superior aos outros.  Esse pedaço de verme, ao que parece, dá actualmente aulas no ISCTE (coitada da escola - deve estar muito mal para fazer tais contratações). É verdade. Estou a destilar veneno. Não é bonito, eu sei. Mas sabe bem.

Fiquei a saber que essa besta " veio concluir que a violência não aumentou nos últimos anos. A investigação, de Abril de 2004, intitulada "Escola e violência - conceitos, políticas e quotidianos", chegou a resultados que contrariam o senso comum. "Não encontrámos dados nem indícios de que as situações de violência em meio escolar tenham assumido nos últimos anos uma dimensão que possa ser considerada como correndo o risco de se encontrar fora de controlo", adianta a equipa de investigação."... LOL LOL LOL

Retiro o que disse. O João Sebastião é apenas um pândego. Era melhor que fosse trabalhar em vez de continuar a tentar fazer carreira de humorista.

Não há mesmo nenhum smiley para sorriso amarelo?
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publicado por Manuel Anastácio às 23:00
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Quarta-feira, 22 de Novembro de 2006
Jasão

Mista sobre tela - Setembro 2006, de D'Noronha - 120 x 60 - Ars Longa

Um gesto sem alento

Nascido em Si sustenido.

Enfim,

Um barulho consentido pelo vento.

Foi num negro momento perto do fim.

Ali,

Como quem vai a descontento contra si mesmo.

Ali mesmo.

Ao pé da negra mesa composta de teias e poeira.

Foi ali mesmo que pela primeira vez o ouvi

– ao simétrico sibilar do afastamento –

Ao lado do bolor

(bolôr? bolór?),

Que em jeito de massapão cobria o banquete intocado

Onde tinha, aliás, pousado, o cálice de vinho envenenado,

Que, aliás, não bebi...

Às escuras, até parece que ainda reluz.

Mas não. O veneno não ilumina.

É pus à procura da gangrena que o produz.

Não o bebi. Olhei apenas.

Sobre a poeira, uma cruz difusa de rubra projecção.

O caldo infuso de uma semente

Com parecenças a dente-de-leão.

Nessa mesma mesa, veladamente nupcial, onde me deste a salvação

Embrulhada na gaze imarcescente da traição,

Encontrei-te, pois, junto do fim,

No reflexo vermelho

Do primeiro encontro.

Não julgues que, quando viste as velas ao longe,

Era eu a governar o barco.

Não o julgues.

Estava aqui, abaixo do nível das águas

Que,

Por salgadas,

Julgávamos lágrimas quando,

Também,

Julgávamos que éramos nós quem provocava as ondas.

Estava aqui.

A povoar o chão de salitre.

Estava aqui.

Quando era ao teu lado que eu devia ter ficado.

Ao teu lado.

Tocável e oferecido, nem que fosse como essas sementes

Que me salvaram –

– com  parecenças de dente-de-leão:

Não porque voassem,

Mas porque exigissem a carne pútrida de quem as comesse para germinar –

Essas sementes que os teus gestos de bruxedo

Arrancaram do corpo em fruto do mesmo galho em que nasceste.

Essas sementes de repulsa que nasceram do desejo

E da fatalidade fratricida

E infanticida

Em que, por ilusão, me apareceste.



Nota: Agradeço ao amigo D'Noronha a permissão para utilizar as suas telas no meu blogue. Prometido fica, também, um post sobre as quatro maravilhas adormecidas que me  chegaram a casa, depois de colhidas pelas suas mãos de artista. Obrigado.
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publicado por Manuel Anastácio às 00:05
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