- O pessoal tem a mania de chamar neve à geada.
- Sim?
- Quando, de facto, a geada forma-se a partir da solidificação do orvalho resultante da condensação do vapor de água. Em contacto com superfícies frias, o vapor de água perde energia e passa directamente ao estado líquido sobre as folhas das plantas ou sobre os vidros frios, e depois, congela...
- Sim?... Sabes, está interessante a conversa, mas tenho de ir para dentro... Está a cair uma orvalhada e não tenho tempo para ficar doente.
- Tá... Fica bem.
- É muito frequente confundir-se inteligência com conhecimento.
- É verdade. Diz-se da população portuguesa que é pouco inteligente, quando ela é, na verdade, apenas pouco culta.
- Quem diz isso é muito pouco inteligente.
Pormenor de "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch (1450 – 1516) - Museu Nacional de Arte Antiga
Se o João Sebastião não mereceu, da minha parte, sequer um post (recebeu, isso sim, uma curta), dei comigo a pensar: está mal que ele tenha uma referência neste meu "diário" enquanto que os outros professores não têm direito, sequer, a uma leve menção. Ora comecemos pela primeira e segunda classe. A minha professora era a senhora Maria José, de Abrantes. Muito gorducha, era conhecida como "saco de batatas". Mas a alcunha maldosa era devida, essencialmente, ao facto de ser reputadamente muito severa. Apesar do 25 de Abril já ter passado há muito, ainda era frequente que os professores da primária da minha aldeia agissem com a ajuda de uma régua de madeira lascada. E ninguém reclamava. Ou melhor, reclamava, mas os professores faziam orelhas moucas e davam outra reguada. E mais nada. Ponto final... Pum. Uma vez, estava ela a passar do lado direito da minha fila (sem que eu o supusesse sequer, já que a sala estava num silêncio sepulcral, deviamente coroado, literalmente, com um crucifixo partido e abananado sobre o quadro preto de ardósia estalada no canto) quando deixei cair a minha preciosa colecção de lápis de cor da Viarco (ou lá o que era, que o dinheiro não dava para Caran d'Ache) e me debrucei para os apanhar. Claro que não sabia, enquanto os meus colegas continuavam a pintar ovinhos, com a língua meio de fora, com o cuidado de não passar do risco, que a professora estava atrás de mim. Debrucei-me para apanhar os lápis e, como na anedota do Taveira, fiquei de rabo para o ar. A professora não gostou do meu gesto indecoroso e puxou-me firmemente a orelha até ter ficado, de novo, sentado no lugar. Maleável e impiedosamente, em segundos, a sala manteve a sua dignidade de Estado Novo, ainda que os lápis se mantivessem pelo chão e as minhas bochechas redondas parecessem explodir de calor, humilhação e uma vontade de dizer que aquele puxão de orelhas era injusto!!! E era! Mas não fiquei traumatizado, descansem. Um puxão de orelhas não traumatiza ninguém, ao contrário do que sustenta a pedagogia oficial em voga. Noutra altura, no entanto, fiquei aliviado com o sentido de injustiça da professora Maria José. Alguém decidiu ficar demasiado tempo na casa de banho depois do recreio (onde também se guardava, curiosamente, a bandeira nacional, ao lado do papel higiénico - honra seja feita a todos os que fizeram as suas necessidades em frente ao símbolo pátrio sem nunca lhes ter ocorrido qualquer ideia menos patriótica, como aconteceu a todos nós que ali compartilhávamos com as quinas imaculadas as nossas infantis diarreias). Ora, a fila para aquela pequena repartição privativa começou a aumentar e, não sei por que razão, estava tudo apertado. A professora Maria José irritou-se com a demora e mandou toda a gente sentar-se no seu lugar. Eu ficava na fila mais à direita, em frente ao quadro, na terceira fila de trás. Ao lado de uma grande janela onde, um dia, vinda de detrás da grande figueira que dava para o alpendre lateral, bateu uma andorinha que não sabia que existia um material chamado vidro, transparente. Foi ali que vi a primeira imagem do que fosse um campo de concentração. A professora começou no primeiro aluno da fila da esquerda, à frente e foi continuando a distribuir reguadas a todos os alunos. Nunca tinha recebido uma reguada. E aquele silêncio apenas cortado pelo estalar da madeira contra a pele só foi igualado num sonho em que me imaginava num autocarro, com todos os lugares ocupados, que era lentamente devorado por um mecanismo que ia esmagando lugares após lugares sem que os seus ocupantes reclamassem ou tentassem fugir, enquanto que eu esperava, no banco de trás. Lembro-me, no sonho, de uma mulher com uma criança ao colo e que, perante a morte iminente, apenas dizia "ai... ai...". A professora Maria José, depois de duas filas longitudinais de alunos apavorados ou com as mãos já a arder, cansou-se. Olhou para a terceira fila, onde estava eu, e disse: "amanhã continuo". Não continuou. E foi assim que nunca levei uma reguada.
Pouco mais me lembro da professora Maria José. Mas, curiosamente, não a detesto. Aprendi a ler em dois anos de uma forma eficiente e limpinha. Isso valeu o clima de terror? Para os meus colegas, não sei, não posso falar por eles. Eu, por mim, não me queixo, nem me arrepio quando passo junto ao edifício quadrado e caiado, hoje ocupado por um jardim de infância. Só fico triste quando vejo que a velha acácia, junto à porta, já não existe. Foi cortada porque empatava o trânsito, dizem. Tretas. Sei que as acácias são invasivas e más para as outras plantinhas mas... aquela acácia era boazinha. Não havia o direito. Durante muito tempo era o único sorriso que tinha à entrada da escola. E, por acaso, até era um sorriso amarelo. Maravilhosamente amarelo e com um cheiro que me fez sorrir quando li, em Proust, o episódio de Odette de Crécy na Avenida das Acácias. Por alguma razão se pode aguentar o peso excessivo da escrita de Proust - de facto, creio que gostamos mais de Proust depois de o ter lido, mas depois de gostarmos, ai de quem disser mal!... Sem a professora Maria José não me teria sido possível gostar de Proust. Por isso, obrigado.
Um gesto sem alento
Nascido em Si sustenido.
Enfim,
Um barulho consentido pelo vento.
Foi num negro momento perto do fim.
Ali,
Como quem vai a descontento contra si mesmo.
Ali mesmo.
Ao pé da negra mesa composta de teias e poeira.
Foi ali mesmo que pela primeira vez o ouvi
– ao simétrico sibilar do afastamento –
Ao lado do bolor
(bolôr? bolór?),
Que em jeito de massapão cobria o banquete intocado
Onde tinha, aliás, pousado, o cálice de vinho envenenado,
Que, aliás, não bebi...
Às escuras, até parece que ainda reluz.
Mas não. O veneno não ilumina.
É pus à procura da gangrena que o produz.
Não o bebi. Olhei apenas.
Sobre a poeira, uma cruz difusa de rubra projecção.
O caldo infuso de uma semente
Com parecenças a dente-de-leão.
Nessa mesma mesa, veladamente nupcial, onde me deste a salvação
Embrulhada na gaze imarcescente da traição,
Encontrei-te, pois, junto do fim,
No reflexo vermelho
Do primeiro encontro.
Não julgues que, quando viste as velas ao longe,
Era eu a governar o barco.
Não o julgues.
Estava aqui, abaixo do nível das águas
Que,
Por salgadas,
Julgávamos lágrimas quando,
Também,
Julgávamos que éramos nós quem provocava as ondas.
Estava aqui.
A povoar o chão de salitre.
Estava aqui.
Quando era ao teu lado que eu devia ter ficado.
Ao teu lado.
Tocável e oferecido, nem que fosse como essas sementes
Que me salvaram –
– com parecenças de dente-de-leão:
Não porque voassem,
Mas porque exigissem a carne pútrida de quem as comesse para germinar –
Essas sementes que os teus gestos de bruxedo
Arrancaram do corpo em fruto do mesmo galho em que nasceste.
Essas sementes de repulsa que nasceram do desejo
E da fatalidade fratricida
E infanticida
Em que, por ilusão, me apareceste.