Sexta-feira, 27 de Outubro de 2006
Arte e propriedade
Pormenor de "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch (1450 – 1516) - Museu Nacional de Arte Antiga A
Carla de Elsinore referia-se, num recente post, ao absurdo de nos apropriarmos de partes do mundo, quando classificamos como nossos poemas, canções, recantos, já que chegará o dia em que "
descobrimos uma montanha de afinidades com pessoas que consideramos pouco menos do que detestáveis".
De facto, seria aterrador se houvesse um paralelismo unívoco entre carácter pessoal e gosto estético.
A fruição de algo é sempre individual - ninguém ouve, lê ou escuta da mesma forma. O acto de contemplar é a segunda fase da autoria de uma obra de arte, sem a qual não seria, sequer, obra de arte. A contemplação da Natureza é, por sua vez, ainda mais pessoal - a tarefa de atribuir valor estético ou significado a uma "criação natural" é exclusivamente nossa. É apenas através da fruição sensorial, emocional e intelectual que as coisas se tornam, idealmente, nossas - porque, concretamente, não são de ninguém: nem delas mesmas, a não ser de uma incognoscível entidade a que, eventualmente, poderíamos designar de Destino.
O facto de alguém detestável apreciar o mesmo suporte físico daquilo que amamos não nos rouba a propriedade íntima do nosso usufruto. Do mesmo modo, quando partilhamos gostos com alguém, essa partilha é, de facto, ilusória. Ninguém ouve a mesma canção, ainda que o fenómeno acústico seja partilhado.
Este problema está fortemente relacionado com a relação entre propriedade e usufruto e com a linguagem que utilizamos para os identificar. Vejamos: o clérigo que fez voto de pobreza e que come lagosta suada nos melhores restaurantes, apenas porque esta é paga por outrém, está a quebrar o voto? Por um lado, não. A noção cristã de pobreza - ou pelo menos a noção que derivaria directamente das palavras de Cristo - não implica a recusa dos prazeres proporcionados pelas riquezas, mas o descomprometimento em relação a estas. A propriedade é uma relação de compromisso em que o objecto possuído não se pode subtrair arbitrariamente à vontade do possuidor. Quando usamos a expressão "a minha canção" ou "a minha praia", contudo, referimo-nos exactamente a uma relação de propriedade: a canção apenas continuará nossa enquanto obedecer por completo às nossas exigências. A partir do momento em que a ouvimos noutro arranjo ou noutra voz (ou, por vezes, noutro contexto), poderemos dizer, com propriedade, que "não é a nossa canção". Não porque o tenha sido alguma vez em termos jurídicos, mas porque não pode deixar de ser na mais irredutível e pessoal das verdades. As frases feitas encerram mais verdades do que poderemos julgar, tendo em conta a má fama que auferiram com o advento da originalidade obrigatória.
Quinta-feira, 26 de Outubro de 2006
Curta 3
É próprio da Condição Humana ser-se alquimista: farmacêuticos a brincar, procuramos a seca longevidade no enxofre das sulfatagens, no mercúrio que se acumula no pescado e nos fornos sujos das cozinhas. Quando é, apenas, nas retortas do silêncio que se poderá, alguma vez, destilar uma palavra de eternidade, límpida e perigosa como a superfície irisada do óleo queimado sobre uma estrada molhada...
Artigos da mesma série: curtas
Terça-feira, 24 de Outubro de 2006
Pormenores - Mosteiro dos Jerónimos II
Ainda com os monstros e as flores dos Jerónimos na retina (e abençoada seja a máquina digital que revela pormenores na pedra lavrada que os olhos ainda ofuscados da luz exterior não conseguem discernir na escuridão da igreja), descubro que fui inscrito entre as retortas alquímicas de um
blog de poesia que me impressionou pelos seus pormenores preciosos feitos de referências de pura e perfeita escuridão. Porque é a escuridão que define a luz, como bem ilustrou o
Paulo Brabo no seu espantoso conto,
Sesulis - como é hábito, a dar uma piscadela de olho a Jorge Luís Borges.
E tudo isto quando estava a ganhar coragem para pegar, finalmente, nas obras de Fulcanelli. Eu sou, de facto, um adepto da alquimia. Não da Alquimia folclórica, mas aquela que procura a pureza da verdade através dos sinais obscuros que nos raptam em direcção à transcendência. Não sei se pareço demasiado pretensioso com esta treta toda, mas não o consigo dizer de outra forma. Como o autor deste monstro, agachado num canto, na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, olhando com ar fero, mas também assustado, para o túmulo de Camões, há coisas que não conseguiremos dizer a não ser pela expressão dos monstros, por vezes belos, que nos velam o sono, os sonhos e o acordar de cada metamorfose.
Segunda-feira, 23 de Outubro de 2006
Pormenores: Mosteiro dos Jerónimos I
Cercadura de porta na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, numa foto de Carla Cristiana Carvalho (1982 - )
Num passeio breve por Lisboa, num roteiro que se centrava basicamente nos espaços devolutos das margens do Mar da Palha, consegui, ainda assim, ler as pedras, os rostos, as carantonhas, as folhas e as flores de pedra do Mosteiro dos Jerónimos1. Em volta das portas do lado esquerdo da Igreja, deixei os olhos deslizar pelas curvas macias de heras, vides, acantos e... no meio destes pormenores vegetalistas todos, encontro esta cercadura de rostos totémicos que parecem saídos directamente da adaptação cinematográfica de "O Senhor dos Anéis"... Desde reis com ar sábio e proverbial, a demónios do Novo Mundo. Para além da personagem feminina no fundo numa posição erótica e exibicionista própria de uma pin up.
Não há, de facto, conceito algum que um só mármore não contenha. Basta que o mármore tome a forma da poesia.
Cercadura da mesma porta, do lado esquerdo de quem contempla
Quinta-feira, 19 de Outubro de 2006
Curta 2
"Um professor não trabalha 12 horitas por semana, do mesmo modo que um jogador de futebol (esses devem ser os seus ídolos...) não trabalha apenas 90 minutos por semana, com 15 minutos de intervalo no meio."Não é meu hábito falar de política nem de questões profissionais num blogue que é para mim mais um caminho de sonhos que uma exposição de pesadelos, mas há coisas que custam ouvir. E este comentário, num fórum do Expresso, em resposta a um senhor que diz que os profes são uma classe privilegiada que trabalha 12 horas (onde, só em componente lectiva??? Uau!!! Isso é possível??? Também quero!) por semana é daqueles que eu teria gosto em ser o autor.
Obrigado, Zegama, sejas lá tu quem fores.
As "curtas" são apontamentos necessários que pouco terão a ver com o que é meu hábito escrever (e que pretendo continuar a escrever) - mas que, para evitar o trabalho de fazer um novo blogue só para estas questões, irei aqui publicando. São coisas da minha condição de ser humano - mais concretas e, provavelmente menos universais. Provavelmente... a melhor cerveja da tasca.
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