Terça-feira, 25 de Julho de 2006
Les Mystères de Paris

Gravura de Beaucé e Staal, para a edição das Obras Completas de Eugène Sue, em 1851

Théophile Gautier dizia que os doentes adiavam a morte para poderem ler o último capítulo de "Les Mystères de Paris", de Eugène Sue. Este romance, nascido na corrente da literatura de cordel, foi um best-seller notável. Publicado em fohetim no Journal des Débats entre Junho  de 1842 e Outubro de 1843, a narrativa desenvolveu-se de acordo com a resposta do público, num mecanismo muito semelhante ao utilizado em muitas telenovelas nos tempos que correm. "Os Miseráveis", de Victor Hugo, foi, em grande parte, inspirado pelo modelo d' "Os Mistérios de Paris" - aliás, uma das suas personagens ganha a vida lendo os capítulos dos folhetins de casa em casa. Pioneiro foi, também, o fenómeno das "obras derivadas" e produtos de merchandising que proporcionou - como acontece hoje com "O Código Da Vinci" ou com o Harry Potter - como a publicação de dicionários de gíria e calão que permitissem a compreensão da linguagem dos tapis-francs (espeluncas frequentadas por malfeitores). Eugène Sue não foi um grande escritor, perceba-se. Mas, não constituindo "Os Mistérios de Paris" uma obra prima, sinto uma especial curiosidade sobre este produto pensado para as massas, de acordo com os gostos das massas, numa época em que o socialismo dava o seu grito de revolta e ainda não se acomodava às terceiras vias da nossa contemporaneidade, em reacção aos maus exemplos dos regimes que sobre ele se levantaram. Ainda mais, o romance reflecte a evolução de pensamento do próprio Sue, que não sendo mais que um dandy cioso da sua originalidade chique, pensou, um dia, que ser socialista assentava-lhe melhor que uns botões de punho novos. Era, assim, um socialismo de salão, uma jóia para exibir nas soirées. Mas Sue não esperava que o povo tão prontamente aderisse às personagens e ao enredo. Um operário desempregado chega a pedir-lhe o endereço de Rudolfo de Gerolstein, a benfeitora personagem do romance. Como diz Umberto Eco n' "O Super Homem das Massas", "a partir deste momento, Sue deixa de escrever Os Mistérios de Paris; o romance escreve-se por si só, com a colaboração do público". Um público que ainda julga que é na benfeitoria dos ricos que reside a salvação da sociedade. Bill Gates seria bem capaz de escrever a sua versão moderna. Eu, por mim, vou entreter-me com a versão antiga mesmo.
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publicado por Manuel Anastácio às 16:28
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Arroz-doce


Cem gramas de arroz carolino. Não pode ser agulha, nem vaporizado, nem Basmati nem outra modernice do género. Quando era pequenino, na minha terra, os casamentos não eram festejados em restaurantes nem em quintas (muito menos em solares, palácios ou outras extravagâncias que a Retoma Financeira permite a quem nela acredita). Era tudo muito caseiro. E não se resumia a um dia, mas a uma semana. As mulheres reuniam-se para fazer o inventário das louças, copos e talheres. Por alguma razão todos os serviços de louça da terra tinham pequenas marcas de tinta no fundo, para que, no final, cada um voltasse a casa com os seus próprios pratos, frequentemente lascados nas bordas devido ao tilintar dos beijos pedidos - para os noivos, para os pais dos noivos, para os avós, para os padrinhos, para tudo o que fosse casal (menos para casais de namorados porque as raparigas solteiras não se sentavam durante todas as refeições - eram elas que carregavam a sopa, o primeiro e o segundo prato, os petiscos finais, como a mistela de sangue e fressura a que se chamava "verde", sem que o fosse, e, claro, as sobremesas). Os homens tratavam de armar uma tenda de grandes dimensões, com telhado de rama de eucalipto, chão de junco e postes enfeitados com hera. Ao longo da tenda, mesas corridas, feitas sobre estacas levantadas do chão, ladeadas por bancos compridos. A comida era feita por um conjunto de "cozinheiras" designadas na primeira reunião das mulheres. Os doces eram feitos na semana antes do casamento, proporcionando ocasião para vários jantares comunitários enquanto ainda houvesse preparativos pendentes. O arroz-doce era branco, não levava praticamente nem leite nem ovos e era toscamente bordado com canela por mulheres apressadas que se limitavam a fazer losangos e arabescos esborratados sobre uma superfície que, chegado o dia do casamento, apresentava rasgos como a terra em tempo de seca. Eu, diga-se de passagem, nunca fui grande apreciador do arroz-doce da minha terra, ainda que agradeça o gesto das vizinhas que ainda vão levando um pratinho dele a casa dos meus pais quando por lá paro. Claro que prefiro quando trazem pão caseiro ou as broas das festas, quentinhas, acabadas de sair do forno a lenha. Mas gosto do meu arroz doce, desenraizado, mas com laivos de leite-creme. Não o leite creme daqui do Minho, que parece papa de farinha Maizena... mas o leite creme fica para depois. Gosto do meu arroz doce. Feito com cem gramas de arroz carolino. Ponho o arroz com uma colher de sopa de manteiga, um pau de canela e uma casca de limão (cortada sem a parte branca do limão) a ferver em água medida pelo triplo do volume do arroz. Quando tenho certeza de que o arroz está cozido, junto meio litro de leite quente, devagarinho. Faz espuma a cada adição, e vai-se formando um creme esbranquiçado a envolver os grãos. A cozinha começa a cheirar a canela e a limão - se não tiverem limão, usem erva-cidreira, e verão o efeito que tem... Lembro-me então, da Salammbô, do Gustave Flaubert, e dos cheiros cartagineses, não sei por que razão (de facto, sei, mas não digo). Depois de achar que o creme está a meu gosto, isto é, depois de penar longos minutos a mexer o arroz que demora a absorver o meio litro de leite, junto quatro (ou cinco) gemas de ovos, caseiros claro... Sim, daquelas galinhas que depenicam as suas próprias fezes... não daquelas que se vêm privadas do fruto da sua própria cloaca. Cada animal é como é e a galinha é assim. E os ovos são mais bonitos e amarelinhos se assim forem... E, graças a Deus, já não há notícias de salmonelas há muitos anos. Junto as gemas depois de as misturar com algumas conchas do arroz cozido, para que não coagule logo, claro. Quando sinto a mistura já suficientemente quente - isto é, se não coagulou, também já não coagula, tumba tudo para o tacho e mexe-se. Logo a seguir, 125 gramas (mais coisa menos coisa - se for menos, tudo bem) de açúcar e mexe-se. Põe-se na travessa e mexe-se para ficar tudo niveladinho. Depois, chama-se a Carla para bordar o arroz. Com as suas mãos de anjo (se não tiverem mãos de anjo, também não posso dar a receita) a canela desliza-lhe entre os dedos e reflecte as bordaduras da travessa. O arroz doce deixa então de ser uma sobremesa. Passa a ser uma pequena gravura ovo-láctea de efémero destino. Nenhum arqueólogo lutará pela sua submersão... Ainda bem.
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publicado por Manuel Anastácio às 01:27
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Domingo, 23 de Julho de 2006
Ono no Komachi - A imperceptível cor da Primavera

Otto Marseus van Schrieck (1619 - 1678): Blaue Winde, Kröte und Insekten ("Corriola azul, sapo e insectos")

Em contemplação
Da chuva insistente
Que cai sobre o chão
Também o meu íntimo
Peito empalidece
Perante a imperceptível
Cor da Primavera.

(Versão de Manuel Anastácio de um poema
de Ono no Komachi, a partir de uma tradução de
Hirshfield & Aratami)
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publicado por Manuel Anastácio às 14:50
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Sábado, 22 de Julho de 2006
Campo de centeio sem papoilas

("Eu espero")  "I wait", por Julia Margaret Cameron (1815-1879).

Ainda antes das cinco da manhã. Um galo fazia estremecer-lhe a respiração oprimida como se a manhã gritasse em dores de parto. Daqui a hora e meia, ouviria o despertador do quarto dos pais a repetir a mesma melodia monofónica. Hora e meia. Tão pouco tempo. Tão pouco calor a envolver-lhe o corpo, pequenino como um grão de areia. Tão pequeno. Ainda não tinha dormido nada. Ao lado, um livro da Enid Blyton repousava as páginas já soltas da lombada frágil. Os maus tinham sido presos. A Ana, a Zé, o Júlio, o David e o cão Tim terminavam a história perante um banquete de scones (ignorava o que fosse um scone) com compota de frutos silvestres e manteiga fresca. Se fosse uma daquelas raras tardes em que podia deitar-se a ler à sombra de uma oliveira ou sentado na ladeira do pinhal, interromperia a leitura, esfomeado perante a imagem de tão prosaicas iguarias. Mas eram cinco e dez. Daqui a uma hora e vinte minutos, ouviria o sino electrónico habitado por demónios desgrenhados pela manhã, arrancados dos seus infernais leitos nocturnos. Ao lado, as Pupilas do Senhor Reitor ainda ecoavam xácaras

Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar
Desde que rompia o dia
Até a noite fechar.

As redondilhas corriam em letras brilhantes sobre o fundo negro avermelhado dos olhos fechados e pontuavam o decorrer do tempo que faltava para que o vento arrebatasse Daniel e Margarida defronte do campo de centeio onde o reitor os espreitava. Um vento gélido que levantaria os lençóis quentes da história e lhe exporia as pernas ao frio da manhã às calças frias e coçadas. Andava a pobre cabreira pelos montes. O sol nascia e ele fechava os olhos. Desde que rompia o dia. Até a noite fechar-se abaixo das pálpebras e logo ressurgir com a excruciante melodia do fundo do corredor. Não, hoje ninguém o tirará da cama. Poderá dormir mais um pouco e, ao acordar, voltar a revirar as páginas do Júlio Dinis sem sujá-las com pó de cimento seco. Irá continuar assim, deitado. Ninguém vai pedir-lhe para se levantar já.

Ouve pés e água a correr. Portas abrem-se. Uma porta abre-se. A do seu quarto. A voz magoada da mãe não o acaricia hoje. Antes que mais te custe. Pousa a roupa gélida sobre os cobertores. O abismo da luz que se escoa pela porta engole-lhe a esperança. Levanta-se de repente, antes que mais lhe custe. A roupa fria e áspera não parece roupa, é mais uma casca. Desce. O pequeno almoço, sem scones e sem manteiga fresca, cheira bem, cheira a casa. Cheira bem, e é isso que o desespera. Não deveria cheirar bem. Não está certo cheirar bem. Preferia que do prato de cereais se desprendessem vapores sulfúricos e de metano e que nos recantos da cozinha ardessem fogos-fátuos. Mas não. Esses vêm depois. O pai tem a mota a trabalhar. O som ruidoso de metal a estalar rebenta-lhe os ouvidos. Procura um sinal de vómito no estômago. Mas este recusa-se a devolver o que recebeu. Não faz parte dele tal órgão, tão alheio que é àquilo que sente. Consegue, entretanto, enfiar o Júlio Dinis entre a marmita de feijoada envolvida em papel de jornal e as sandes de queijo e chourição. A mota arranca, faz a curva e a rua afasta-se. Seguem-se estradas envoltas em nevoeiro, ramos de pinho e eucalipto. Seguem-se as margens em declive sobre o rio que vai cheio. Os seus olhos fecham-se contra o vento. A noite volta a querer intrometer-se sob as pálpebras. Abre os olhos à força. Agarra-se melhor. Mas a noite é mais forte. O som da mota grita estridentemente a sua xácara de ódio às manhãs que cantam. A noite embala-se nos minutos que faltam para apear-se no pesadelo de um dia inteiro. O rio distende farrapos da noite sobre a superfíce suja do seu caudal. As árvores sucedem-se e a noite cai. Como o seu corpo pequeno, sob a manhã estridente, se abandonou ao rodopiar do chão em declive até ao rio. Não longe de um campo de centeio, até então sem papoilas.
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publicado por Manuel Anastácio às 18:40
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Sexta-feira, 21 de Julho de 2006
O Jovem Törless


Fotograma do filme "O Jovem Törless", de Volker Schlöndorff, baseado no romance de Robert Musil

"O Jovem Törless" (Die Verwirrungen des Zöglings Törless), o romance de estreia de  Robert Musil (6 de Novembro de 1880, Klagenfurt, Áustria – 15 de Abril de 1942, Genebra, Suíça), em 1906 tem, essencialmente, a forma de um Bildunsroman, ou seja, um "romance de formação". Este género, nascido com Wilhelm Meisters Lehrjahre ("Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister") e que teve dignos representantes na "Montanha Mágica" de Thomas Mann ou no "Retrato do Artista enquanto Jovem" de James Joyce é constituído, igualmente, por retratos autobiográficos onde os autores reflectem sobre as influências que os formaram no que são ou foram de mais essencial. Estes percursos de aprendizagem e descoberta (ou exposição crua ao mistério) fazem caminho entre afectos, ódios, noções de beleza, religião, ocultismo, metafísica, filosofia e perpectivas políticas e éticas. "O Jovem Törless" centra-se na natureza do que chamamos alma e na ambiguidade das motivações humanas. Claro que tem uma forte carga psicológica e política que reflecte de forma crua e incómoda comportamentos que permeiam a história da humanidade. Mas, estranhamente, toma uma posição de aparente indiferença perante o sadismo humano e quase o justifica como um meio, entre tantos, de atingir a lucidez.

Tudo se passa num afamado colégio interno para rapazes. Aqueles alunos são, à partida, a futura elite política e cultural dos seus países. Um destes, Basini, é apanhado a roubar outro colega. Dois alunos, Beineberg e Reiting decidem tomar à sua conta o infractor. O primeiro tem o cérebro povoado de filosofias orientais mal enjorcadas por influência do seu pai, mas tais pensamentos (bem glosados em vários romances de formação, como nos de Herman Hesse) são decididamente insuficientes para Törless, que procura algo de mais claro e perceptível. As concepções tomadas de empréstimo de Beineberg e Reiting resultam apenas em sevícias físicas e sexuais que terminam em experiências psicológicas sobre Basini, cuja alma se torna apenas num objecto manipulável para defender teorias.

Törless sente em relação a tudo uma confusão que não consegue resolver pelo caminho da reflexão lógica. Procura respostas em Kant (sem as compreender) ou no professor de Matemática, depois de os números imaginários bailarem à sua frente, vindos do nada e do ilógico, mas tão logicamente adaptáveis à realidade. Insatisfeito com essas respostas que faltam, Törless segue um caminho paralelo ao dos seus colegas Beineberg e Reiting que termina num lampejo de sabedoria indiferente. É discutível se Törless é, no fim de tudo, mais humano que Beineberg e Reiting ou mais digno que estes. Mas nenhum percurso é definitivo, nem um romance tem a presunção de ser o Evangelho.

Mas a conclusão última de Törless sobre a Verdade é límpida:

"(...) há pensamentos mortos e pensamentos vivos. O raciocínio que se move na superfície iluminada, que a qualquer instante pode ser conferido pelo fio da causalidade, não é necessariamente o pensamento vivo. (...) Um pensamento - mesmo que tenha passado pela nossa mente há muito tempo - só viverá no instante em que alguma coisa, que já não é o pensar, que já não é lógica, se acrescenta a ele, de modo que sentimos a sua verdade para além de qualquer justificação, como uma âncora que dilacera a carne viva e ensanguentada... Uma grande compreensão só se realiza pela metade no círculo de luz na nossa mente; a outra metade realiza-se no solo escuro do mais íntimo de nós e é, antes de mais nada, um estado de alma em cuja ponta extrema, como uma flor, pousa o pensamento."

(A citação é da tradução de João Filipe Ferreira)

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publicado por Manuel Anastácio às 16:16
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