Sábado, 21 de Janeiro de 2006
Intermitências da morte
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“Suite n.º 6 para violoncelo" de Bach, por Phoebe Carrai

 

 

E se no dia seguinte ninguém morresse? No dia seguinte ao segundo extranumerário do ano que passou, à décima-terceira hora – a que se segue à décima segunda, sendo a primeira*? Sim. E se uma morte – não a Morte, que há muitas, e cada um tem a sua – descobrisse o que é sentir o corpo quente da vida nas arcadas risonhas de um violoncelo que toca a Suite n.º 6 de Bach?

 

Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
– Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.

 

E se um cão se deitasse no colo dela? E se ela envolvesse de carne o seu frio esqueleto incapaz de chorar, apesar do desejo? E se no dia seguinte ninguém morresse?

 

José Saramago, desde que ganhou o Nobel, entrou por uma escrita que me tem decepcionado no momento da leitura, mas que depois brota na memória com outras cores e profundidade. Li a Caverna e desesperei naquele deserto alegórico, urbanista e céptico-alquimista. Mais tarde, o forno, o cântaro, o barro, o cão, o chão negado pelo Centro foram tomando uma proporção épica e poética. Passo por alto o vazio negro e policial de O Homem Duplicado e entramos no Reino subterrâneo da morte e da sua gadanha abandonada. A mesma morte do Sétimo Selo de Ingmar Bergman ou da Turma do Penadinho do Maurício de Sousa... Ou a morte de alguns cartoons de Quino. Teremos, com certeza que passar o penoso exercício, que se vai tornando habitual em Saramago, do desenvolvimento de um “e se...”, teremos de conviver com os gabinetes estéreis dos ministros e as negociatas palacianas com a mafia e o contrabando da morte, com as companhias de seguros e com as agências funerárias. Mas o mais belo vem depois. Quando conhecermos em osso e, depois, outro, em carne, o gélido adiamento do que é inevitável por ordem não se sabe de quem...

* a que vai à frente, segundo a minha versão da Artémis de Nerval.

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Artemisa, de "As Quimeras" de Gérard de Nerval

                                      Nerval

Santa Rosália de Palermo, ermitã - senhora dos húmidos segredos da Terra, preside a mais uma tradução minha de um soneto de Gerard de Nerval (As Quimeras).


Em décimo-terceiro volta... à frente... 

E sempre a única –  único instante;

Já que és rainha! Provir ou o poente?

És rei, tu, único ou o último amante?...

 

Do berço ao caixão, ama quem tal sente

A que amei, inda de amor ofertante

É morte – ou morta... Gozo atormentante!

E malva-rosa é a rosa vigente.

 

Santa Napolitana: acesos dedos,

Santa Gúdula: rosa, roxo imo,

Viste a cruz nos celestiais degredos?

 

Rosas brancas que insultais nossos credos,

Caís, brancos vultos, de ardente cimo?

Mais santa és, se de fundos segredos.


(Versão de Manuel Anastácio)

 

Gerard de Nerval, As Quimeras

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