Terça-feira, 27 de Setembro de 2005
Corpus Christi

Corpus Christi.JPG

Imagem: Baixo relevo (ou alto-relevo, consoante os pontos de vista) na Sé de Viseu sobre a deposição da Cruz (a fotografia é minha e está em domínio público).

É verdade. Estamos no século XXI. Custa a acertar na data. Ainda nos referimos ao século XIX como sendo o "século passado" - pelo menos é o que vejo nos cotas como eu. É verdade. Já estamos fartos de dizer que é uma vergonha estarmos no século XXI e ainda existir pobreza generalizada no mundo. Ainda existem extremistas. Terroristas. Ainda existe o Bush. E até a palavra Sócrates (antes, sinónimo de sabedoria) foi conspurcada por este início de século. Claro que os séculos são uma construção aleatória. Tivéssemos nós 11 dedos nas mãos e um século já não teria 100 anos. E os números redondos seriam os números que para nós são bicudos. Os séculos, as décadas, tudo - são invenções. O milénio, então, é uma invenção com religião à mistura, o que complica o assunto.

Agora, que na minha provecta idade de três décadas, encontre gente mais nova que eu com ideias próprias do Américo Tomás é que me custa. Quando o Tomás,  conhecido por Corta-fitas (convém explicar isto que há muita gente que não sabe) - que era presidente da República Portuguesa, antes da explosão do orgasmo de cravos em Abril do ano antes do meu nascimento -  quando este senhor, dizia eu, visitou uma exposição em Torres Novas, discursou muito brilhantemente: "Hoje, visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei..." A sapiência desta frase, unida a outra que o senhor disse noutra ocasião: "É a primeira vez que cá estou desde a última vez que cá estive", mostra que os soldados do Senhor de La Palisse, o tal que quinze minutos antes de morrer ainda estava vivo, podem ter vindo primeiro com as afirmações universalmente consensuais, mas estavam longe da genialidade do nosso bom Américo Tomás.

Ora. Estamos no século XXI. O século em que... Em que as Torres Gémeas foram abaixo? Sim... Tá bem. Pensem numa coisa boa... O século em que... Em que... É difícil pensar em coisas boas... O século em que se inventou... O que é que se inventou neste século? É tudo melhorias do que já foi inventado? Tá bem. Menos mal. Melhorias. Ora: estamos no século das melhorias do que já foi inventado. Estamos também no século em que pessoas com formação universitária mandam esta maravilha de e-mail a fazer-me lembrar a minha adolescência - a saudosa altura em que vi "A Última Tentação de Cristo" numa cópia ranhosa em VHS com a mesma sensação de pecado que teria se estivesse a ver um filme pornográfico. Na altura as freiras faziam bicha à entrada dos cinemas a tentar converter os pecadores que tivessem o bom gosto de ver o muito conservador (digo eu - e os padres católicos, hoje, no século XXI ,  também já concordam comigo, quase todos) filme do Martin Scorcese... Ora, dizia eu: estamos no século em que gente com formação universitária manda esta pérola de burrice e de falta de carácter aos endereços registados na sua caixa de e-mail:

Um filme nojento está sendo filmado para aparecer na América este ano, o
qual mostra Jesus e seus discípulos como homossexuais!!! Da mesma forma que
uma peça que já tem estado em teatros por algum tempo. Se chama "Corpus
Christi" que significa "O Corpo de Cristo". É uma gozação revoltante do
nosso Senhor. Mas nós podemos fazer diferença. É por isso que estou mandando
esse e-mail para todos vocês. Você poderia, por favor, adicionar o seu nome
no final da lista desse e-mail? Se você fizer isso, nós poderemos ser
capazes de banir esse filme de ser mostrado na América. Aparentemente,
algumas regiões da Europa já baniram o filme. Tudo que precisamos é de
muitas assinaturas! Lembre-se, Jesus disse: "Aquele que me negar diante dos
homens, eu o negarei diante do meu Pai que está nos Céus".



Por favor não reencaminhe simplesmente!!!



Copie, Por favor, esta mensagem (CTRL+ C), cole (CTRL+V) numa nova mensagem
(não esqueça de apagar as moradas anexadas aos "fowards") e depois adicione
o seu nome no final da lista e mande para todos os seus contactos.



Quando as assinaturas da lista atingirem 500 nomes (ou seja quem for o nº500
da lista), por favor mande-as para:

homasg@softhome.net <mailto:homasg@softhome.net>



E depois comece de novo......

SE TRABALHARMOS JUNTOS PODEREMOS FAZER ISTO!!!

Obrigado!!!

 

Agora: meus caros... Eu ainda sou do tempo que um paposseco ou uma carcassa (um trigo, como se diz cá no Norte) custava "dois e quinhentos". Sou velhote? Se calhar sou. Com muito orgulho. É que não quero ser confundido com "jovens" com alma de PIDE, que assinam abaixos-assinados a proibir a exibição de filmes porque denigrem a imagem de Jesus Cristo. O facto de o filme indicado na mensagem não existir e de isto ser apenas uma daquelas correntes que só servem para entupir a Internet é um pormenor acessório. Mas posso informar: Houve realmente uma peça de  Terrence McNally sobre um Jesus Cristo homossexual. Mas daí até à transposição para cinema, vai um bocado...

Ora, eu ainda sou do tempo em que estive hospedado na casa de uma senhora muito católica, viúva de um "Opus Dei", que viu comigo, numa noite, o filme "O Padre", de  Antonia Bird - e,  numa altura em que eu julgaria que a senhora bradaria aos céus contra a perversidade do segundo canal da televisão portuguesa ao mostrar numa perspectiva simpática a homossexualidade de um padre, quando o filme acabou, disse-me com um ar muito cândido: "Um filme muito bom. É algo que acontece muito na Igreja... Mas há muita hipocrisia..."

Ora, será que desde a idade em que as carcassas custavam dois e quinhentos até hoje houve um retrocesso tão grande que gente supostamente inteligente ainda passa esta MERDA de mails? E, pior ainda, compactuam com a ideia de censurar um filme? Se eu não quero ver um filme com Jesus a beijar Simão Pedro na boca, não vejo. Se acredito em Deus, por que não aceitar as palavras de Gamaliel (Actos dos Apóstolos, capítulo 5): "se o seu projecto é humano, será destruído; mas se vem de Deus, não conseguireis aniquilá-los. Cuidado, não corrais o risco de vos meterdes contra Deus!"...

Ora, o Deus em que eu acredito é um Deus com sentido de humor. Só pode ser. Para nos fazer passar as passas do Algarve, como nos faz passar por cá, é apenas porque é um tipo que gosta de reinar com o pessoal: a gente morre e lá está Ele todo galhofeiro: "então! Não custou assim tanto viver uma vida miserável, pois não? Afinal, tens uma vida eterna pela frente"... E assim ficaremos todos muito contentes para o resto da eternidade a tocar harpa ou guitarra eléctrica, conforme os gostos, enquanto o resto do pessoal passa fome cá em baixo, mata-se, tortura-se, maldiz-se, trapaceia-se, engana-se, destrói-se... Enfim, a história do costume. E os Anjos vão fazendo apostas: "aposto cinco almas em como Bin Laden consegue mesmo dar cabo daquelas torres" - "apostado!"... E por aí fora. É. No céu aquilo é uma reinação. E quem levar a mal agora, aposto que quando lá estiver já não leva: na perspectiva das nuvens, uma criança a morrer de fome é apenas uma alma pura que se vai juntar a nós em breve... É que no céu não há emoção. A emoção é uma coisa corporal, ligada à carne - são as lágrimas, os apertos na garganta e no peito... Os espíritos não sofrem disso. Cristo terá sofrido - dizem que mais que as outras pessoas... Eu não sei. Tomé não acreditou. E teve o privilégio de ver antes de acreditar. Porque é que nós é que temos de ser os enteados que não temos direito a ver nada? Ah, já sei - não vemos porque não queremos ver, né? Tá bem, melga.

Ora, meus amigos. Era só para dizer: se receberem aquela MERDA do e-mail, não sejam merdosos. Mandem uma descompostura a quem o mandar. Lembrem-se dos meninos à volta da fogueira - aqueles que aprenderam o que custou a liberdade. Aqueles que aprenderam que Deus não fica irado com piadas nem com romances. E que negar a Jesus Cristo é negar a compaixão e a boa vontade. Se Jesus Cristo (o Jesus Cristo bondoso e capaz de rir em que acredito) recebesse aquele mail, responderia, com certeza, em palavras aureoladas: "Meu caro: vá levar no cu". Claro que seria crucificado uma segunda vez... Mas acho que desta vez doeria menos. Uma pessoa vai-se habituando.

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Terça-feira, 13 de Setembro de 2005
Sinédoques e metonímias

                                      Pintura

Passo a citar a citação de outra citação, ao jeito de Paul Auster (ou quiçá, ao jeito de Edgar Allan Poe no Arthur Gordon Pym ou de Cervantes, no Dom Quixote): «A metonímia é simples variante da sinédoque; são denominações essas de distinção tão subtil que autores há que dão como exemplo de metonímia aquilo mesmo que outros subordinam à sinédoque, e tratadistas há que mal mencionam essas denominações de tropos semânticos. [...] Se na sinédoque se emprega o nome de uma coisa em lugar do nome de outra nela compreendida, na metonímia a palavra é empregada em lugar de outra que a sugere, ou seja, em vez de uma palavra emprega-se outra com a qual tenha qualquer relação por dependência de ideia: damasco = tecido de seda com flores ou espécie de abrunho, ambas provenientes de Damasco [...]; louro, por glória, prémio; cãs, por velhice; Fulano é um bom garfo [...].» (aproveito para aplaudir a sobrevivência do Ciberdúvidas, graças à Vodafone e aos CTT).

Folheando, agora, a Praça da Canção de Manuel Alegre, encontro aquele poema em prosa do início - as rosas vermelhas :

"(...) todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura. (...)

Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar, porque bastava eu chamar:

- Mãe! (...)

Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida? (...)

Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:

- Mãe!

A voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?

Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.

No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.

Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela."

Era esta pétala uma metonímia? Podem os objectos tomar o lugar da poesia? Não estou a falar das artes plásticas - mas os objectos do dia a dia... Uma tesoura poderá significar a morte? Um frasco pode significar o corpo? A tinta poderá significar a alma? Claro que sim. Nem tenho dúvidas.

E imagino um poema feito de objectos. Uma mesa sobre a qual os dispomos: um a um, numa ordem cujo significado só NÓS conhecemos. E poderiam existir sonetos, odes, elegias...

Os elefantes, quando descobrem os ossos dos seus entes queridos (sim, porque os elefantes têm entes queridos), pegam neles com a tromba e gritam de desespero. Choram de uma forma que muita gente julga exclusiva da pouca sensibilidade humana. Nesse caso, são os ossos uma sinédoque do amigo falecido. No nosso caso, julgamos os ossos apenas a metonímia da morte. Temos-lhe nojo porque não são parte de quem amámos, mas o sinal asqueroso da dolorosa separação. Não nos torna melhores que os elefantes, esta interpretação dada a tais objectos. Apenas nos torna leitores diferentes de um mesmo texto.

Ignace J. Gelb, em "The History of Writing", conta que no Turquestão oriental uma jovem enviou ao seu amado algumas folhas de chá, uma palha, um morango maduro, um damasco seco, um pedaço de carvão, uma flor, um torrão de açúcar, um seixo, uma pena de falcão e uma noz. É difícil, para nós, ignorantes, perceber tal pansemiose manuelina. Mas, ali, as metonímias misturam-se, contorcem-se...

"A dor já nem me permite engolir o chá, a palidez da palha espalha-se no meu rosto, ainda que o sangue me suba às faces quando penso em ti. Ardo de desejo como um carvão por causa da beleza que desabrocha no teu corpo e na doçura dos teus gestos. É de pedra, o teu coração? Quero voar até ti agora mesmo, eu, que sou como uma noz nas tuas mãos."

Dedico este post à Cristiana, que há dois anos atrás estava também sem dormir a esta hora...

E a única palavra que pode resumir tudo: Amo-te.

Depois penso numa metonímia para tal significado.

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publicado por Manuel Anastácio às 01:06
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Domingo, 11 de Setembro de 2005
(Des)ilusão

Ouroboros  romance de Chekhov, o Duelo, começa com dois amigos dando um mergulho matinal nas águas frias do Cáucaso. Laievski queixa-se da ilusão de ter amado uma mulher casada, de a ter levado de casa e com ela ter-se desterrado num fim de mundo... Aquilo que tinham sido beijos, declarações, ideais, tinha descambado na monotonia provinciana de uma vida desalentada. Laievski é uma personagem desagradável desde a primeira página. Irresponsável, egoísta, ocioso, um diletante pretensioso... e cego. Está tão ocupado em odiar a vida monótona da aldeia caucasiana e os langores da mulher que arrancou de uma vida de respeitabilidade, que não vê nada. Tão ocupado em lamentar a ilusão de ter amado, que apenas quer fugir, seguindo os mesmos passos que o levou à desilusão em que se encontra. A desilusão persegue-nos os passos e aponta sempre o mesmo caminho: aquele que a ela dá: um ouroboros que se devora a si mesmo - a imagem do Universo real - a imagem da verdade.

Depois, existe Von Koren, um zoólogo adepto dos mais selvagens corolários da selecção natural. Segundo ele, Laievski é um cancro que tem de ser extirpado da sociedade. "No interesse da humanidade, e no seu próprio interesse, tais indivíduos devem ser suprimidos. Suprimidos!" - defende energicamente... Ao que Samoilenko, o amigo de Laievski, riposta: "Se for necessário afogar ou enforcar pessoas, então a tua civilização que vá para o diabo! Eis o que eu te digo: és um homem muito instruído, um espírito aberto, que honras o teu país, mas os Alemães contaminaram-te! Sim, os Alemães, os Alemães." (o romance é de 1891...)

Laievski tenta fugir da aldeia e abandonar a mulher, pouco depois de lhe ter dado a notícia da morte do marido. A situação conduz a uma troca de palavras violentas com Von Koren e é marcado um duelo. Laievski, entretanto, descobre a mulher na cama com outro. Na véspera do duelo, Laievski, consciente como nunca dos seus próprios defeitos, com nojo de si mesmo, vira, uma após outra, as páginas da sua vida e chora as lágrimas amargas que banham as páginas escritas pelo destino, sem as apagar. Aceita como necessária a sua aniquilação. A desilusão aparece-lhe agora de outra forma: já não é a desilusão que remete para um futuro tão ilusório como o presente. O ouroboros vomitou a sua cauda e estende-se em agonia. Não resta qualquer esperança. É apenas um verme que tem de ser pisado. É, também, a imagem da verdade, tão límpida quando a pode revelar a lupa meticulosa da zoologia...

"Que morra hoje ou amanhã, tanto faz, uma vez que estou perdido. Que essa mulher desonrada se mate de desespero, ou arraste a sua existência numa vida lamentável, de qualquer forma, ela está perdida." A aproximação da hora fatal do duelo traz-lhe ao pensamento memórias de infância. Percebe que o mundo nada ganhou com a sua vida. Nem uma simples erva nasceu dos seus esforços nulos... É perfeitamente normal que aceite o extermínio. Deseja-o, mesmo. Entretanto, as testemunhas do duelo chamam-no para o acto de honra. Laievski dirige-se para a cama onde está a mulher, com que ainda não falou desde o momento em que a encontrou nos lençóis da traição... Ela acorda sobressaltada e treme, ignorando que o companheiro segue para um duelo de onde pode não voltar com vida. Ele aperta-a nos braços e beija-a. "Depois, como ela murmurasse qualquer coisa, acariciou-lhe os cabelos e, ao olhá-la, compreendeu que essa mulher viciada, depravada, infeliz, era para ele um ser único, insubstituível.

Quando subiu para o carro, desejou regressar com vida."

Laievski descobria de novo a verdade e descobria de novo o verdadeiro significado da desilusão. Era como se as ilusões estivessem encerradas umas nas outras, como matriochkas e, no fim, descobrisse que aquela que lhe parecera a maior ilusão - o seu amor por Nadejda - fosse a mais irredutível das verdades e a única que o poderia resgatar da sua vida mesquinha e inútil.

Só para dizer que a desilusão não é perder ilusões - é criar outras... E nem sempre criamos as melhores - principalmente quando sabemos perfeitamente aquilo que há de mais essencial em nós, intuitivamente, e feitos parvos corremos a destruir as verdades que nos correm nas veias, apenas para erigir o castelo ilusório da amargura egoísta. E aquilo que há de mais essencial em nós é simples. Não obedece a lógicas. Descansa num primeiro beijo impossível, dado na distância, numa noite em que a ilusão do beijo foi a mais violenta das verdades.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:25
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Sábado, 10 de Setembro de 2005
Tristão e Isolda

Andamos todos enganados, não? A desilusão persegue-nos os passos e aponta sempre o mesmo caminho: aquele que a ela dá.

 

A palavra desilusão sempre me intrigou: o acabar das ilusões é mau? Só seria mau, se as ilusões fossem boas.

 

E não são?

 

Haverá algo melhor que uma boa ilusão?

 

Li no Crítico a descrição da cenografia da última produção do “Tristão e Isolda” no festival de Bayreuth – local onde nunca fui e duvido que vá algum dia (não porque não queira, claro) e as palavras começaram a esbater-se e a perder significado. Li, sem ler. Pouco me interessava o soalho ou o casaco “very british” de Tristão... Pensei apenas num frasco de mentiras – num doce veneno que lançou as duas criaturas para os braços uma da outra, sem pejos de moralidade, religião, dever ou honra... Apenas aquele laço que uniu duas criaturas carnais destinadas à suprema ilusão. E ao único tipo de morte que a não apaga. A morte na ignorância que os artíficios humanos tão bem destila...

 

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publicado por Manuel Anastácio às 22:49
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França

Rio Sabor, na Serra de Montesinho

Nasce o rio Sabor (dizem por lá Sá-bôr), na Serra de Montesinho, no silêncio impressionista da folhagem dos freixos e no espelho da água que corre a conta gotas, num ano em que o céu foi avaro. Chega-se lá por um caminho de terra batida, sinuosa e esburacada. A última vez que trataram do caminho foi quando um ministro de incógnita memória lá passou umas férias regaladas, a convidar aos piqueniques sobre a relva e aos pés em água fria... Pouco mais à frente, existe uma aldeia chamada França. Conta-se que muitos passadores de emigrantes ilegais, na época em que a União Europeia ainda não tinha cá chegado à província, eram para ali trazidos e ali deixados, julgando estar mesmo no país para lá dos Pirenéus.

A placa atestava indubitavelmente a chegada à terra prometida. Imagino as pessoas a descerem de um camião de aspecto duvidoso, olhando em volta o aspecto tosco e selvagem da serra. O cheiro da noite, o uivo de algum lobo ao longe... Talvez parecesse um bom augúrio o nome do país aparecer escrito em tão bom português e não existir guardas de alfândega... As promessas de uma vida melhor encontravam-se onde? Atrás daquela colina? Afinal, pensariam para si mesmos, enquanto seguiam em silêncio pelo caminho estreito, sobre o rio e as bétulas, talvez o desterro não seja muito penoso... A água corre com o mesmo som que na aldeia de onde vinham. O chão é parecido: terra lousinha (xisto, para os eruditos)... A urze, as silvas, as plantas com picos parecem as mesmas...

O cantar do galo é igual e o céu descobre-se lentamente com as mesmas matizes de Portugal... Até as casinhas que se perfilam ao fundo com os telhados de ardósia escura parecem emitir a mesma luz de candeia de quem madruga para o trabalho do campo... Custará, depois, admitir o engano, quando se cruzarem com aquele aldeão que chama as vacas na mesma língua em que vão a pensar? Como custará nessa altura ouvir as palavras ouvidas no berço?...

E descobrirão, com certeza, que não há maior desterro que aquele que se encontra em solo pátrio.

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publicado por Manuel Anastácio às 21:57
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