Quinta-feira, 14 de Julho de 2005
Herbário I - Origanum virens

                 Orégãos - Origanum virens

Trinquei uma minúscula folha de orégãos e veio-me o sabor de Carvalhal à boca. Como Proust comendo uma madalena com chá de tília - comparação vulgar, mas necessária, voltei a percorrer os trilhos dos pinhais e das hortas da minha infância. E Carvalhal, nessa altura, era uma enorme massa vegetal aninhada em vales e montes redondos. As estradas retalharam os locais mágicos onde, como coelhos, fazíamos túneis no meio das silvas, madressilvas, heras, trepadeiras, pilriteiros, medronheiros e nabos-espanhóis. E Carvalhal, sem o saber, tinha o sabor e o cheiro que só notei mais tarde, como quase com tudo, pela ausência. Não seria o sabor de Carvalhal, com certeza - será o sabor que vem à boca de quem teve uma infância agreste e passou tardes selvagens na solidão acompanhada de um silêncio verde nas catedrais das ladeiras e das galerias de ribeiras escondidas por choupos, salgueiros e videiras. E para mim, só Carvalhal tem (tinha) isso. Mértola sabe a poejos macerados. O Gavião, a pão quente às quatro da manhã. O Alandroal - não, não sabe a aloendros - sabe a um copo de tinto, a queijo seco e gasolina. Sintra sabe a serradura (declaro, para quem ficar chocado com esta comparação que, para mim, Sintra é Chão de Meninos, perto do cemitério, onde antes havia uma serração). O Canadá sabe a água. Berlim sabe a mostarda. Barcelona sabe a pastis e licor de maçãs verdes. Sardoal sabe a loureiro. Cabeça-das-Mós sabe a livros com um leve toque a caruncho. Aveiras de Cima sabe a mosto a fermentar. Lisboa sabe a sangria aromatizada com hortelã. Aveiro sabe a detergente. Joane sabe a broa de milho. Braga sabe a gelado de ovos moles (num sítio chamado colheradas - é o melhor gelado do mundo, com direito a orgasmo). Andreus sabe a pútegas. Santarém sabe a pampilhos. Abrantes sabe a éter. Guimarães, não sei ainda ao que sabe. Vivo cá. Sinto ainda um sabor de cada vez...

Mas Carvalhal sabe a orégãos - ainda que não se veja quase nenhum... Nisso, isto difere da madalena do Proust. Não me lembro de encontrar orégãos em Carvalhal - claro que as azeitonas traziam o seu perfume. Mas o sabor que me veio à boca foi o das pétalas de marmeleiro que comia em direcção à escola; o sabor dos medronhos das tardes em que não lanchava porque não me apetecia ir para casa; o sabor da água com lodo e elódeas quando não tinha aulas à tarde e ia caçar girinos; o sabor dos rebentos ácidos, amargos e tenros das silvas; o sabor a terra dos bolbos minúsculos de umas plantas azuis que a inconsciência da infância nos fazia comer; o sabor das amoras negras; das cerejas e nêsperas roubadas que nos enchiam de melaço os bolsos; o cheiro do pequeno copo de vinho abafado que a tia Augusta nos deixava provar...

Sabe a tudo. Na memória apenas. Quando lá volto, já não é o mesmo sabor. Basta-me trincar uma minúscula folha de orégãos.

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publicado por Manuel Anastácio às 20:39
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Quarta-feira, 13 de Julho de 2005
Fauno e rapariga

fauno.JPG

Trago a embriagez de frutos por fermentar,

E a suave doçura do mel nos meus braços.

Trago a luz do sol nos meus cabelos baços.

E muito mais do que queres desejar.

Não sei que desejo é este,  de me dar,

E me oferecer em cada bago que trago,

pronto a fecundar os teus lábios com graínhas,

Quando temes cada um dos meus passos

E foges, com asco, dos meus abraços,

Correndo por florestas queimadas,

descansando em margens desviadas,

E dormindo sem saudades minhas.

 

Fauna.JPG
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publicado por Manuel Anastácio às 21:16
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Terça-feira, 12 de Julho de 2005
a) Nerium oleander
Contavam à minha mãe que era o suicídio mais doce: um ramo de aloendros debaixo da almofada... Na verdade não sei de ninguém que desta forma se tenha rendido... Mas, mito ou não, percorre-me um frio na espinha sempre que vejo estas flores a arder no escuro da noite e o silêncio que se desprende delas. Faz lembrar os romances de Zola, como a donzela de "O crime do Padre Mouret" que se suicida sufocada em flores; como o cemitério de "A Fortuna dos Rougon", repleto de ervas daninhas furiosamente adubadas pelos corpos em putrefacção, onde os dois amantes se encontram; como a estufa exótica de "O Regabofe" onde o drama grego do incesto se repete, entrelaçado com o retorcer das plantas venenosas e belas: o apelo e a náusea vegetal, a armadilha de Vénus: a morte escondida no paraíso. A mais forte das drogas; fazendo lembrar o conto infantil que li em criança, de um livro de que não me lembro, a não ser da imagem de uma bela donzela sentada numa pilha de caveiras, numa gravura a negro sobre papel amarelecido... O conto de um pobre estudante de medicina que não soube, em determinada altura, dizer qual era o mais forte narcótico do mundo; o mesmo pobre estudante que, sem o saber, vê todos os seus desejos, para sua má sorte, realizados e que por serem realizados o levam ao patíbulo onde tem direito ao seu último desejo. E pede, perante o fantasma da morte dolorosa, o mais forte narcótico do mundo... Que lhe é misericordiosamente administrado pelo machado do carrasco. Já não me lembro bem da história - ficaram apenas farrapos. Hoje em dia as crianças já não lêem contos destes. É tudo suavizado e em tom pastel - e as crianças vingam-se, trazendo à luz o sadismo que têm no íntimo mas que não lhes é administrado por contos que, mais que povoar os sonhos com fantasmas , nos faziam conviver face a face com os fantasmas que já nascem connosco.
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publicado por Manuel Anastácio às 02:38
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Herbário I - Nerium oleander

Sem titulo.JPG

Vi almas penadas a voar

e lanças espetadas nas estrelas

Em grupos de três, a sangrar...

Vi pétalas de lividez

Em grupos de cinco, a gangrenar...

Vi nos sonhos de quem morre

Aquilo que a vida enterra.

Vi as hastes vegetais irrompendo da terra parindo

Aloendros brancos

Símbolos eróticos da seiva

Da noite

E da morte.

Ouvi o sussuro da calmaria

E os passos de quem colheu o silêncio branco

Das flores que oferecem o doce odor do sono eterno.

Ouvi o sussurro da calmaria

E na vida que irrompe da terra parindo

Cheirei

Os alandros brancos

Brancos loendros

Aloendros brancos

Oleandros

Em grupos de três

Almas penadas a voar

Colhidas e escondidas na cabeceira de quem não quer acordar.

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publicado por Manuel Anastácio às 02:04
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