Trinquei uma minúscula folha de orégãos e veio-me o sabor de Carvalhal à boca. Como Proust comendo uma madalena com chá de tília - comparação vulgar, mas necessária, voltei a percorrer os trilhos dos pinhais e das hortas da minha infância. E Carvalhal, nessa altura, era uma enorme massa vegetal aninhada em vales e montes redondos. As estradas retalharam os locais mágicos onde, como coelhos, fazíamos túneis no meio das silvas, madressilvas, heras, trepadeiras, pilriteiros, medronheiros e nabos-espanhóis. E Carvalhal, sem o saber, tinha o sabor e o cheiro que só notei mais tarde, como quase com tudo, pela ausência. Não seria o sabor de Carvalhal, com certeza - será o sabor que vem à boca de quem teve uma infância agreste e passou tardes selvagens na solidão acompanhada de um silêncio verde nas catedrais das ladeiras e das galerias de ribeiras escondidas por choupos, salgueiros e videiras. E para mim, só Carvalhal tem (tinha) isso. Mértola sabe a poejos macerados. O Gavião, a pão quente às quatro da manhã. O Alandroal - não, não sabe a aloendros - sabe a um copo de tinto, a queijo seco e gasolina. Sintra sabe a serradura (declaro, para quem ficar chocado com esta comparação que, para mim, Sintra é Chão de Meninos, perto do cemitério, onde antes havia uma serração). O Canadá sabe a água. Berlim sabe a mostarda. Barcelona sabe a pastis e licor de maçãs verdes. Sardoal sabe a loureiro. Cabeça-das-Mós sabe a livros com um leve toque a caruncho. Aveiras de Cima sabe a mosto a fermentar. Lisboa sabe a sangria aromatizada com hortelã. Aveiro sabe a detergente. Joane sabe a broa de milho. Braga sabe a gelado de ovos moles (num sítio chamado colheradas - é o melhor gelado do mundo, com direito a orgasmo). Andreus sabe a pútegas. Santarém sabe a pampilhos. Abrantes sabe a éter. Guimarães, não sei ainda ao que sabe. Vivo cá. Sinto ainda um sabor de cada vez...
Mas Carvalhal sabe a orégãos - ainda que não se veja quase nenhum... Nisso, isto difere da madalena do Proust. Não me lembro de encontrar orégãos em Carvalhal - claro que as azeitonas traziam o seu perfume. Mas o sabor que me veio à boca foi o das pétalas de marmeleiro que comia em direcção à escola; o sabor dos medronhos das tardes em que não lanchava porque não me apetecia ir para casa; o sabor da água com lodo e elódeas quando não tinha aulas à tarde e ia caçar girinos; o sabor dos rebentos ácidos, amargos e tenros das silvas; o sabor a terra dos bolbos minúsculos de umas plantas azuis que a inconsciência da infância nos fazia comer; o sabor das amoras negras; das cerejas e nêsperas roubadas que nos enchiam de melaço os bolsos; o cheiro do pequeno copo de vinho abafado que a tia Augusta nos deixava provar...
Sabe a tudo. Na memória apenas. Quando lá volto, já não é o mesmo sabor. Basta-me trincar uma minúscula folha de orégãos.
Trago a embriagez de frutos por fermentar,
E a suave doçura do mel nos meus braços.
Trago a luz do sol nos meus cabelos baços.
E muito mais do que queres desejar.
Não sei que desejo é este, de me dar,
E me oferecer em cada bago que trago,
pronto a fecundar os teus lábios com graínhas,
Quando temes cada um dos meus passos
E foges, com asco, dos meus abraços,
Correndo por florestas queimadas,
descansando em margens desviadas,
E dormindo sem saudades minhas.
Vi almas penadas a voar
e lanças espetadas nas estrelas
Em grupos de três, a sangrar...
Vi pétalas de lividez
Em grupos de cinco, a gangrenar...
Vi nos sonhos de quem morre
Aquilo que a vida enterra.
Vi as hastes vegetais irrompendo da terra parindo
Aloendros brancos
Símbolos eróticos da seiva
Da noite
E da morte.
Ouvi o sussuro da calmaria
E os passos de quem colheu o silêncio branco
Das flores que oferecem o doce odor do sono eterno.
Ouvi o sussurro da calmaria
E na vida que irrompe da terra parindo
Cheirei
Os alandros brancos
Brancos loendros
Aloendros brancos
Oleandros
Em grupos de três
Almas penadas a voar
Colhidas e escondidas na cabeceira de quem não quer acordar.