Quarta-feira, 30 de Março de 2005
A Blog is an insufflated dog

Joan Miró, pessoas, cão e sol

"Havia em Sevilha um doido, que deu no mais gracioso disparate e teima que nunca se viu. E foi que fez um canudo de cana pontiagudo, e, em apanhando um cão na rua, ou em qualquer outra parte, prendia-lhe uma pata com os pés, com a mão levantava-lhe outra, e, como podia, lá lhe adaptava o canudo em sítio, em que, soprando-lhe, o punha redondo como uma péla, e, quando o apanhava deste modo, dava-lhe duas palmaditas na barriga, e soltava-o, dizendo aos circunstantes (que sempre eram muitos): Pensarão agora Vossas Mercês que é pouco trabalho inchar assim um cão. Pensará Vossa Mercê agora que é pouco trabalho fazer um livro." - Miguel de Cervantes in "Dom Quixote de la Mancha"
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publicado por Manuel Anastácio às 03:21
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Terça-feira, 29 de Março de 2005
O Fantasma
Tenho um fantasma em casa. Tenho mesmo. Um fantasma erudito que passeia com os livros, os CD-ROMs de um lado para o outro sem dar cavaco a ninguém. Estou a alguns passos do castelo de Guimarães, por isso, é provável que o "locus" de São Mamede - a Batalha definidora da nacionalidade portuguesa tenha sido aqui mesmo. As fundações da casa podem, certamente, assentar em terra que se encharcou no sangue de quem defendia o filho ou a mãe. A verdade é que ninguém sabe ao certo o local. Mas pode ter sido aqui. Por isso, candidatos a fantasma não faltam... Junto a casa tenho uma ribeira mínima que há cem anos atrás era um rio onde se pescava e tudo. Talvez seja um pescador de peixinhos de rio que por aqui deambula (não pode ser nenhum marinheiro truculento como o "Fantasma apaixonado" do filme do Joseph Leo Mankiewicz, é certo)... É normal. Em pequeno, ouvia a minha mãe a contar a história da menina que morreu sem receber uma máquina de costura que lhe tinha sido prometida em vida... O fantasma era sobejamente conhecido na aldeia (e não só - faz parte do imaginário colectivo da zona centro de Portugal em geral). Toda a gente conhecia e já tinha ouvido claramente os sons da máquina a trabalhar noite fora e da tesoura a pousar no tampo - claro que ninguém tinha coragem para verificar a origem do barulho, mas toda a gente jurava a pés juntos que era verdade... Eu, claro, não acreditava, até ter o meu fantasma doméstico, mais dado às novas tecnologias. Claro que cada um tem o seu tipo de fantasma. Um bêbedo da terra, cujo nome já não me lembro bem, viu, numa meia noite ou coisa que lhe valha, na Cruz Carril (um cruzamento de estradas - o que mais podia ser? Um local no meio de um pinhal, sem nada à volta a não ser a massa branca de uma paragem de autocarros), um fantasma mais divertido -talvez com os copos... Viu (juro que não estou a inventar - se alguém inventou alguma coisa, foi o tipo, não eu) "uma bicicleta sem rodas a andar". Asustou-se, meteu-se pinhal adentro (lugar sinistro, eu sei, mas as meninas dos filmes de terror não fazem o mesmo?). Aterrado, encostado a um pinheiro, ouviu alguém a rir-se na copa da árvore. Agastado com o riso, já que preferia algo de mais lúgubre, foi a casa, pegou num machado e, bastante mais tarde, voltou para cortar o pinheiro, sem dar satisfações ao dono... Supostamente, haveria um pano preto agarrado à ponta da árvore - sinal de luto, mas pouco esclarecedor quanto às intenções espirituais da alma penada. Na mesma Cruz Carril, calhou ao Chico da minha rua (rua de infância - não esta aqui em Guimarães) encontrar um círculo de bruxas - tudo mulheres da terra, num grande regabofe. Estou a cometer uma indiscrição, já que não deveria contar isto a ninguém - foi-me pedido, com muita seriedade, pelos filhos do Chico, meus amigos de infância, há não sei quantas décadas atrás (não são assim tantas). O Chico conheceu as mulherzinhas todas que o ameaçaram de todo o género de desgraças se este viesse a revelar a identidade de uma que fosse... Se ele revelou o nome de alguma, não foi a mim... Houve também o Esquinsito (diminutivo de Joaquim) que levou uma estalada de uma mão fria saída de um marmeleiro no caminho ermo que levava à igreja velha (velha mesma, não havia nada de antigo na minha terra, a não ser os fantasmas, mesmo). Todos tinham a sua história de fantasmas. Eu estive perto de ter a minha, quando, naquelas tardes de inverno em que anoitece cedo, vi um corpo a sair da valeta numa estrada sem iluminação que ligava a paragem de autocarros até à minha rua - ao longo de campos salpicados de oliveiras cujos ramos desenhavam padrões móveis de sombras, como macacos a saltar de galho em galho. Era, afinal, um velhote escanzelado da Ribeira da Brunheta (a uns dez quilómetros dali) que tinha caído da bicicleta e adormecido na lama, a meio quilómetro da taberna (não sei como fez, depois, os outros nove quilómetros e meio)... Enfim, não tive fantasmas... Até que, por circunstâncias pouco amigas da narrativa curta, descobri que tenho um fantasma que gosta de investigar e... por incrível que pareça, não pára só cá em casa - gosta de sair. Talvez tenha aprendido com o Dom Quixote. Depois de ter andado a investigar as enciclopédias da casa (talvez me tenha também andado a "atentar" na wikipédia), acho que decidiu sair à aventura com o Dom Quixote e com o Sancho, rua abaixo, a caminho das terras que povoam os livros do Camilo Castelo Branco e da Agustina Bessa Luís... E voltou, de novo. Não sem antes deixar pousado junto ao sofá o segundo volume do Dom Quixote, depois de eu o ter procurado meses (e já ter equacionado comprar uma outra edição)... É: eu não rezo ao Santo António para achar objectos perdidos... Afinal, se é o fantasma que os tem, há-de ser ele a devolvê-los. Não me parece que o tipo sofra de cleptomania...
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publicado por Manuel Anastácio às 02:41
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Domingo, 27 de Março de 2005
Mignon
limoes3.jpg

 

“Di Provenza il mar e il suol” de “La Traviata" de Verdi, na voz de Lauritz Melchior, numa gravação de 1913 (por isso, não estranhem o som!), a acompanhar a nostalgia mediterrânica do poema.

 

Poema de Goethe, inserido em "Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister" - a tradução (livre, como sempre) é minha. A preparar mais um soneto de Nerval.

Conheces o país onde crescem os limoeiros,

Onde, na folha escura, as laranjas são luzeiros,

Onde do azul do céu uma ténue brisa sopra

E entre os altos ramos de loureiro, é calma a murta?

Não o conheces bem?

                   Seria para aí que eu iria,

Para estar contigo, oh, meu amor!

 

E a casa que em esteios e colunas é sustentada?

Os seus quartos radiosos e ofuscante entrada,

E onde o olhar de estátuas de mármore nos alcança?

“Mas o que fizeram contigo, pobre criança?”

Não a conheces bem?

                   Seria para aí que eu iria,

Para estar contigo, meu vero protector!

 

Conheces aquele monte de nuvens cercilhado?

A mula que passa pelo caminho enevoado,

E dragões que em grutas perpetuam a geração,

E rochedos polidos pela água em borbotão;

Não a conheces bem?

                   Seria para aí que eu iria,

É por onde temos de seguir. Pai, é essa a nossa via!

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publicado por Manuel Anastácio às 22:24
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Sábado, 26 de Março de 2005
Mo Cuishle
Mo Cuishle disse-me no fim que foi o mais belo filme que alguma vez viu... Talvez. Muito provavelmente. Porque não me lembro de outro filme onde o sangue, as feridas, a dor, a violência, a morte e a miséria se transfigurem assim, num sorriso de amor divino. Talvez este filme não seja cristão. Há nele o paganismo das opções conscientes e do gosto pelo circo a quem falta o pão. Há nele a nostalgia das ilhas encantadas e das noites que murmuram - a nostalgia dos fantasmas que povoam os palcos sujos onde nos estatelamos em náusea. Neorealista e melodramático. Triste como a mais amarga das lágrimas. Plácido como quem olha as margens de Innisfree, num lago qualquer onde nunca repousaremos as nossas chagas... Sim, Mo cuishle, talvez seja o mais belo filme que alguma vez vi... (Claro que estou a falar de "Million Dollar Baby", ainda.)
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publicado por Manuel Anastácio às 18:09
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The Lake Isle of Innisfree de William Butler Yeats

Vou levantar-me e ir agora, e ir para Innisfree,

Uma pequena cabana de argila construída aí, de colmo as telhas,

Nove filas de feijão, e uma colmeia de abelhas e mel, aí

E viverei só na clareira onde zunem as abelhas.

 

E teria alguma paz por aí, já que a paz goteja lenta,

Gota a gota dos véus da manhã até onde o grilo canta;

Toda a noite alta é luz fosca por aí, e o meio dia, púrpura, em luz violenta,

E, cheia com as asas dos pintarroxos, a tarde se levanta.

 

Vou levantar-me e ir agora, para sempre, noite e dia,

Ouvir o som alto da água nas margens do lago em convulsão;

Enquanto junto ao caminho, ou sobre o pavimento acinzentado me veria,

Ouvindo-o no mais fundo do cerne do coração.

 

Versão de Manuel Anastácio

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publicado por Manuel Anastácio às 02:11
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