Domingo, 9 de Julho de 2006
Arte e escravidão

Apolo e duas Musas (detalhe, com Euterpe), de Pompeo Battoni (1708-1787)

O que é que distingue a música clássica1da música dita ligeira? Todos sabemos que as diferenças não são estanques. Alguns dizem: a complexidade - mas há obras populares cuja complexidade é, de longe, superior à de muitos compositores, minimalistas ou não. A antiguidade não é critério  - a dita música clássica, música erudita-ou-lá-o-que-é refere-se, na linguagem vulgar também a música conteporânea (à música contemporânea, dirão os puristas). É uma música séria, dizem alguns - séria? Como assim? As receitas musicadas de Leonard Bernstein, "La Bonne Cuisine: Quatro Receitas para Voz e Piano" são sérias? A sério?... Ora, aquilo a que eu chamo de música enquanto Arte (substituindo apenas a questão: "o que é Música?" por "o que é Arte?"...), e que exclui muita mas não toda a música popular, tem apenas uma característica distintiva: a sua presunção. Não o digo com carácter pejorativo. A música enquanto Arte assume uma posição de superioridade sobre a música popular apenas porque assim se assume. Nada há de objectivo nessa assumpção. Mas o facto de querer ser superior é que a torna de facto superior. Assim, quando um cantor pop decide para os seus botões: "vou fazer uma obra de arte", para mim, estará a fazer música-dita-clássica (mesmo que eu não goste da mesma) - e sê-lo-á, de facto, se tiver potencialidade para presumir ou provar (com tempo) que continuará a ser tocada e ouvida para a posteridade. Aqui, a porca torce o rabo - quando classificamos o que é música enquanto Arte em contraste com a música enquanto simples entretenimento, teremos, então, de fazer futurismo para saber se existirá público, daqui a 100 anos, para uma peça musical? E, se existir, passa a ser música clássica? Ora, todos temos a certeza de que daqui a 100 anos ainda se ouvirão os Beatles, se ainda houver gente e meios de os ouvir. São, portanto, música clássica. Mas por que terão de ser 100 anos? Graças a Deus que Mendelssohn conseguiu resgatar Johann Sebastian Bach das prateleiras antes de decorrido tal tempo, caso contrário, ainda se conseguiria provar que Bach é uma questão de moda e não um valor cultural superior.

Mas, graças à cultura cristã, e, em especial católica, as pessoas têm, em geral, vergonha de assumir superioridade ou, se o fazem, sabem que serão atacadas por isso. Lia, ainda hoje, na Estrada  de Santiago (com as devidas ressalvas devidas ao virtuosismo semântico do autor):
Um só blogger representa um tal índice de vaidade e egocentrismo que pode causar danos colaterais graves nos organismos que o rodeiam.  A vaidade e o egocentrismo são, de facto, vistos como causadores de dano. Mas a verdade é que tudo o que seja criação (de um blog ou de uma peça musical) assenta a sua superioridade na vaidade do autor (de forma justificada ou não - isso cabe ao público ingrato e diacrónico decidir, ao compartilhar dessa vaidade). Vaidade que se expressa na crença de que a sua arte traz em si algo de intemporal. Será que um cantor pimba se preocupa com tal problema? Creio que não - a sua preocupação é a satisfação das necessidades imediatas de entretenimento do seu público. Um músico/artista pode, de facto, criar uma peça de valor duvidoso ou polémico - a 4' 3'' de John Cage será considerada uma peça nula por muito boa gente e por muitas boas razões - mas é feita com uma intenção que se baseia na vaidade do autor - na sua presunção de que tem autoridade para dispor do tempo do ouvinte. E os ouvintes/apreciadores da música/arte não são mais que escravos voluntários do ego do criador. O ouvinte exclusivo de música popular, como o detractor da arte de vanguarda, são, por seu lado, criaturas livres. Tão livres quanto um animal selvagem. Mas livres. Tenho de pensar nisto.
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publicado por Manuel Anastácio às 01:41
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