Quarta-feira, 17 de Dezembro de 2003
Dogville vs Clown in Cabul

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Dogville. Um filme sobre a humilhação, a vingança e a maldade que reconhecemos em nós.

Clown in Cabul é um documentário. Passou em "Os sinais do Tempo" na TV2, sexta feira. Humilhação, compaixão, e a salvação das almas que só pode existir se, para além de reconhecermos a sua possibilidade, fizermos algo para a atingir...

Não há contradição nestes filmes. Apenas os dois lados da mesma condição de ser humano. Mesmo que o primeiro seja uma alegoria e o segundo a exposição de uma realidade.

Se é que a realidade alguma vez se expõe.

publicado por Manuel Anastácio às 13:42
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Domingo, 14 de Dezembro de 2003
Suspiros
Ponte di sospiri.jpg A ponte dos suspiros dos condenados. No dia em que Saddam foi preso. Technorati Profile
publicado por Manuel Anastácio às 18:14
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Quinta-feira, 11 de Dezembro de 2003
O Encontro - Tradução de um Conto de Edgar Allan Poe, por Manuel Anastácio

O Encontro

Edgar Allan Poe

 

           

 Espera-me onde estás, não faltarei

em ir ao abismo onde te sei.

      [Exéquia pela morte da sua esposa,

      por Henry King, Bispo de Chichester]

 

            Infortunado e misterioso homem! - Perplexo no resplendor da tua própria imaginação, e derruído nas chamas da tua própria juventude! Invoco de novo a tua imagem no meu espírito. Mais uma vez hás-me surgido em aparição! - não - oh! não como agora és - sombra no vale frio - mas como deverias ser - dissipando uma vida de gloriosa meditação nessa cidade de assombradas visões, a tua própria Veneza - a qual não é mais que um Elísio marítimo amado pelos astros, e as largas janelas pelas quais palácios Palladianos sondam o fundo com um profundo e amargo desígnio sobre os segredos das suas águas silenciosas. Sim! Repito-o - como tu deverias ser. Há certamente outros mundos além deste - outros pensamentos além dos pensamentos da multidão - outras especulações além das especulações do sofista. Quem, então, porá a tua conduta em questão? Quem te injuriará pelas tuas horas visionárias, ou denunciará essas ocupações como desperdício de vida, que não eram mais que os derrames das tuas perpétuas energias?

            Foi em Veneza, debaixo da galeria coberta a que chamam de Ponte di Sospiri, que eu encontrei, pela terceira ou quarta vez, a pessoa de que falo. É através de uma reminiscência confusa que trago à memória as circunstâncias deste encontro. Contudo, lembro-me - ah! Como me poderia esquecer? - a meia-noite profunda, a Ponte dos Suspiros, a beleza da mulher, e o Génio do Romanço meneando-se no estreito canal.

            Era uma noite de escuridão insólita. O grande relógio da Piazza soou a quinta hora da noite italiana. A praça do Campanile jazia silenciosa e deserta, e as luzes no velho Palácio Ducal extinguiam-se prestamente. Voltava a casa, vindo da piazetta, pelo Grande Canal. Mas assim que a minha gôndola defrontava com a entrada do Canal San Marco, uma voz feminina dos seus recessos irrompeu subitamente pela noite num selvagem, histérico e prolongado grito.  Alarmado pelo som, levantei-me num pulo; enquanto o gondoleiro, deixando escorregar o seu único remo, perdia-o na escuridão betuminosa, sem qualquer hipótese de o recolher de novo, e fomos, por conseguinte, abandonados à força da corrente que aqui se dispõe do maior canal para o mais pequeno. Como um condor descomunal de plumagem negra, fomos adejando lentamente até baixo da Ponte dos Suspiros, quando mil luminárias refulgindo das janelas, e do fundo das escadas do Palácio Ducal, converteu subitamente toda aquela profunda escuridão num dia lívido, como que imaterial.

            Uma criança, escorregando dos braços da sua mãe, tinha caído de uma das janelas superiores da majestosa construção para o profundo e obscuro canal. As águas serenas encerraram-se placidamente sobre a sua vítima; e, ainda que a gôndola onde ia fosse a única à vista, muitos robustos nadadores, já na corrente, procuravam em vão sobre a superfície, o tesouro que só poderia ser achado, ai de mim!, dentro do abismo. Sobre as vastas lajes de mármore negro da entrada do palácio, e poucos passos acima da água, sustinha-se uma figura que ninguém que alguma a vez tenha visto a terá podido esquecer desde então. Era a marquesa Afrodite - a adoração de toda a Veneza - a mais feliz das felizes - a mais graciosa onde todas eram belas - mas também a jovem esposa do velho e intriguista Mentoni, e a mãe daquela linda criança, a sua primeira e única, que, quem sabe, no fundo abissal da água escura, estaria a pensar com amargura do coração nas suas suaves carícias, e exaurindo a sua pequena vida em esforços para chamar pelo seu nome.

            Ela mantinha-se sozinha. Os seus pequenos e argênteos pés descalços cintilavam no espelho negro de mármore debaixo de si. O seu cabelo, não mais que meio solto pela noite  no seu vestido de baile, ajuntado, no meio de um jorro de diamantes, rolando e enrolando a sua cabeça clássica, em ondulações como as do tenro jacinto. Uma veste alva como a neve, semelhante a gaze, parecia perto de ser  somente o velame das suas formas delicadas; mas o ar de Verão avançado e alta noite estava quente, soturno e quieto, sem agitar a sua figura estática, nem animar as pregas dessa véstia vaporosa que pendia em torno de si como o pesado mármore pende em torno de Niobé. No entanto - estranho de dizer! - os seus grandes e reluzentes olhos não estavam virados para baixo, sobre aquele túmulo em que a sua mais luminosa esperança jazia enclausurada - mas pregados numa direcção absolutamente diversa! Penso que a prisão da Sereníssima República é o mais afamado edifício de toda a Veneza - mas como podia aquela digna dama contemplá-lo tão fixamente, quando abaixo dela jaz sufocando o seu próprio filho? Aquele negrume, escuro nicho, também, irrompe do lado oposto da janela do seu quarto - então, o que poderia existir nas suas sombras - na sua arquitectura - nas suas solenes cornijas entrelaçadas de hera - que a Marquesa di Mentoni não tenha admirado mil vezes antes? Disparate! Quem não sabe que, em situações como esta, o olhar, como um espelho estilhaçado, multiplica as imagens da sua angústia, e vê em inumeráveis e desavindos lugares a mágoa que encerramos rente a nós?

            Muitos degraus acima da Marquesa, sobre o espaço ocupado pelo ancoradouro, sustém-se, em fato de cerimónia, a figura afim de Sátiro do próprio Mentoni. Estava ocasionalmente ocupado em matraquear uma guitarra, e parecia ennuyé de morte, dando intervaladamente ordens para o salvamento do filho. Eu próprio, estupefacto e aterrorizado, não conseguia mover-me da posição perpendicular que tinha tomado quando ouvira o grito, e devo ter parecido aos olhos do grupo agitado uma espectral e ominosa aparição, quando, de rosto pálido e membros rígidos, vagava entre eles naquela gôndola funérea.

            Todos os esforços foram frustrados. Muitos dos mais incansáveis na busca afrouxavam as suas diligências, cedendo ao mais sombrio desalento. Parecia haver pouca esperança para salvar a criança (quanto menos que para a mãe!), mas eis que, do interior daquele nicho que já mencionara como sendo parte da prisão da Sereníssima República, defrontando a gelosia da Marquesa, uma figura encapotada subiu até ficar ao alcance da luz e, parando um momento sobre a orla da descida vertiginosa, mergulhou de cabeça sobre o canal. Quando, num instante após, ele se sustinha com a ainda viva e ofegante criança nos seus braços, sobre as lajes de mármore ao lado da Marquesa, o seu manto, carregado de água escorrente, desprendeu-se, e caindo em sulcos aos seus pés, revelou aos espectadores apanhados de surpresa, a pessoa graciosa de um jovem, com um nome cujo som a maior parte da Europa então propalava.

            O salvador não disse palavra. Mas a Marquesa! Ela agora receberia o seu filho - pressioná-lo-ia contra o seu coração - colar-se-ia ao seu pequeno vulto e afogá-lo-ia de mimos. Mas o que vejo?! Outros braços o receberam do estranho - outros braços o levaram dali e o carregaram para longe, sem mais, para dentro do palácio. E a Marquesa! Os seus lábios - os seus lindos lábios tremem; apinham-se de lágrimas os seus olhos - esses olhos que, como no canto de Plínio, são “suaves e quase líquidos”. Sim! Apinham-se de lágrimas estes olhos - e vejam! Toda ela estremece cada canto da alma, a estátua começou a lograr vida! A palidez do seu rosto de mármore, a tumidez do seu peito de mármore, a penetrante pureza dos pés de mármore: notamo-las subitamente percorridas por uma maré de involuntário rubor; e uma leve agitação vibra pelo seu corpo delicado, como uma brisa napolitana pelos pujantes lírios de prata na verdura.

            Por que coraria aquela dama!? Para esta pergunta não há resposta - excepto que, tendo deixado, na apressada diligência e terror do seu coração de mãe, a privacidade do seu próprio boudoir, descurou-se de prender os seus delgados pés em chinelos e esqueceu-se completamente de lançar sobre os seus ombros venezianos aquela roupagem como é devido. Que outra possível razão existiria para assim corar? - para assim fazer rebrilhar aqueles apelativos olhos selvagens? - para assim provocar insolitamente o tumulto daquele peito latejante? - para assim oprimir convulsivamente aquela mão tremente? - aquela mão que caiu, assim que Mentoni voltou para dentro do palácio, acidentalmente, sobre a mão do estranho. Que razão poderia haver para a subtil - a singularmente subtil inflexão daquelas palavras enigmáticas que a digna dama sussurrou apressadamente ao fazer a despedida? “Eis que ganhaste”, disse ela, ou iludiram-me os murmúrios da água, “eis que ganhaste - uma hora depois do nascer do sol - encontrar‑nos‑emos - assim seja!”

            O tumulto acalmou. As luzes foram-se extinguindo por dentro do palácio, e o estranho, que reconheci, ficou sozinho sobre o patamar. Abalado por uma agitação inconcebível, o seu olhar dispersou-se em redor em busca de uma gôndola. Não podia fazer menos do que pôr a minha à sua disposição; ele aceitou a cortesia. Tendo obtido um remo no ancoradouro, prosseguimos até à sua residência, enquanto este rapidamente se recompunha e falava da nossa anterior leve convivência em termos de aparente grande cordialidade.

            Existem algumas naturezas sobre os quais tenho o prazer de me debruçar minuciosamente. O aspecto do estranho - deixem-me designá-lo por este título, quem para todo o mundo continuava a ser um estranho - o aspecto do estranho é uma dessas naturezas. Em altura devia estar um pouco mais abaixo do que sobre a dimensão média: embora houvessem momentos de intensa paixão em que o seu corpo efectivamente expandia-se, desmentindo a asserção. A leve, quase frágil simetria da sua figura prometia mais daquela ágil actividade que evidenciara na Ponte dos Suspiros que daquela força Hercúlea, pela qual era conhecido, que brandia sem um esforço, em alturas de maior perigo e emergência. De boca e queixo deiformes - único, selvagem, denso e líquido olhar cujas sombras variavam da pureza do avelã à intensidade e brilho do azeviche - e uma profusão de encrespado, negro cabelo, na qual uma testa de inusitada amplitude irradiava, em frestas, absoluta luz e marfim - eram estas as suas feições, das quais nunca encontrei modelos mais classicamente regulares excepto, talvez, as de mármore do imperador Commodus. Contudo, a sua fisionomia era, apesar de real, uma daquelas que todos os homens vêem nalgum período da sua vida, para jamais voltar a ver. Nada tinha de distintivo, não tinha qualquer expressão marcadamente predominante que se fixasse na memória; uma fisionomia vista e imediatamente esquecida, mas esquecida com um vago e persistente desejo de  a evocar na memória. Não que o espírito de cada paixão faltasse, a qualquer momento, para despedir a sua própria e distintiva imagem sobre o espelho daquela face - mas esse espelho, como que reflectindo, não retinha nenhum vestígio de paixão, quando a paixão o abandonasse.

            Ao deixá-lo, na noite da nossa aventura, solicitou-me, naquilo que me pareceu de forma obstinada, que o visitasse muito cedo na manhã seguinte. Pouco depois do nascer do sol, encontrava-me, como fora acordado, no seu palácio, uma daquelas descomunais estruturas de sombria mas fantástica ostentação, como aqueles que se erguem sobre as águas do Grande Canal, vizinhos ao Rialto. Fui encaminhado por uma larga escada em caracol pavimentada de mosaicos, para um salão cujo esplendor sem paralelo irrompeu pela porta aberta com um lídimo resplendor, cegando-me e atordoando-me com ostentação.

            Eu sabia da riqueza de quem me acolhia. A sua reputação aludia aos seus haveres em termos que eu até arriscava chamar termos de ridículo exagero. Mas enquanto esgazeava o olhar em meu torno, não consegui convencer-me que a riqueza de qualquer outra pessoa na Europa pudesse alguma vez suplantar a magnificência principesca que fulgurava e refulgia à minha volta.

            Apesar de, como já disse, o sol já ter nascido, ainda assim era o salão radiantemente iluminado. Calculei por este motivo, bem como pelo ar exausto do rosto do meu amigo, que ele não havia recolhido à cama durante toda a noite precedente. Na arquitectura e ornamento da sala evidenciava-se o desígnio de encandear e assombrar. Pouca atenção fora posta à decoração tecnicamente chamada de conjunto ou a quaisquer características nacionais. O olhar vagueava de objecto para objecto e não repousava sobre nenhum - nem nos grotesques dos pintores Gregos nem nas esculturas dos melhores dias Italianos nem nos colossais frescos recortados de um Egipto alheio. Ricas tapeçarias em todas as partes da sala tremiam com a vibração de uma subtil e melancólica música cuja origem não deveria ser descoberta. Os sentidos eram oprimidos por mesclados e desafectos perfumes, exalando de estranhos incensórios convolutos apensos a  rutilantes e crepitantes línguas de violento fogo esmeralda. Os raios do sol recém-nascido espalhavam-se sobre tudo isto, através das janelas formadas cada uma de um único vidro vermelho-profundo. Transcorrendo em contravoltas, em mil reverberações, de cortinas que revoluteavam  das suas cornijas como cataratas de prata fundida, os raios de esplendor natural confundiam-se difusamente com a luz artificial, e jaziam embrulhando-se em frouxas massas sobre um tapete soberbo, de fluente tecido de ouro do Chile.

            ‘Ha! ha! ha! - ha! ha! ha!’ - gargalhou o senhorio conduzindo-me a um banco assim que entrei na sala, e atirando-se  de volta a uma otomana onde se estendeu ao comprido. ‘Vejo’, disse ele, percebendo que eu não era capaz de me reconciliar imediatamente à bienséance de tão singular acolhimento, -‘Vejo que está espantado com os meus aposentos - com as minhas estátuas - os meus quadros - a minha originalidade de concepção arquitectónica e mobiliária! absolutamente ébrio, eh, com a minha magnificência? Mas desculpai-me, meu caro senhor (aqui, o seu tom de voz declinou para uma intensa disposição de cordialidade); desculpai-me por aquela gargalhada inospitaleira. É que me pareceu tão completamente atarantado. Demais, algumas coisas são tão completamente absurdas, que um homem tem por obrigação rir, ou morre. Morrer a rir deve ser, de todas as mortes gloriosas, a mais gloriosa! Sir Thomas More - foi um admirável homem, Sir Thomas More - Sir Thomas More morreu a rir, lembre-se. Também nas ‘Absurdidades’ de Ravisius Textor, há uma longa lista de personagens que tiveram este mesmo magnífico fim. Sabia, contudo’, continuou ele, em devaneio, ‘que em Esparta (que hoje se chama Paleocori), em Esparta, dizia eu, a ocidente da cidadela, entre um caos de ruínas muito pouco visíveis, há um tipo de estrado, sobre o qual ainda são legíveis as letras LAXM. São, sem dúvida nenhuma, parte de GELAXMA. Ora, em Esparta havia um milhar de templos e altares para um milhar de divindades diferentes. É estranho por demais que o altar do Riso tenha sobrevivido a todos os outros! Mas na presente disposição,’ retomou ele, com uma singular alteração de voz e atitude, ‘não tinha o direito de me rir às suas custas. É normal que tenha ficado espantado. Toda a Europa não consegue exibir nada de tão requintado como isto, o meu augusto asilo. Os meus outros quartos não são, de maneira nenhuma, comparáveis - meros ultras de uma insipidez ditada pela moda. Isto é melhor que a moda - não é? No entanto, bastaria isto ser visto para fazer furor - isto é, para aqueles que pudessem custear isto no valor de todo o seu património. Atentei, contudo, contra qualquer profanação deste género. Com uma excepção, você é o único ser humano, além de mim mesmo e do meu camareiro, a ser admitido nos mistérios destes recintos imperiais, desde que eles assim foram entabulados!’

            Reclinei-me em retribuição - por causa do incomportável intento de esplendor, perfume, música, unido à inesperada excentricidade do seu acolhimento e maneiras, fiquei salvo de expressar, por palavras, a minha consideração por aquilo a que me permiti conceber como um cumprimento.

            ‘Aqui’, retomou, erguendo e encaminhando-me pelo braço enquanto circulava pelo salão, ‘há aqui pinturas desde os Gregos até Cimabué, e de Cimabué até ao momento presente. Muitas são escolhidas, como vê, com pouca consideração à opinião do “bom gosto”. São todas, contudo, estrágulos ajustados a uma sala como esta. Aqui, também, estão algumas chef-d’oeuvres de ilustres desconhecidos; e aqui, criações inacabadas de homens, célebres no seu tempo, cujos copiosos nomes a perspicácia das academias relegou para o silêncio e para mim. O que pensa,’ disse, virando-se abruptamente enquanto falava, - ‘o que pensa desta Madonna della Pietá?’

            ‘Própria de Guido!’ disse eu, com todo o entusiasmo da minha natureza, já que tinha estado concentrado intentivamente no seu inultrapassável encanto. ‘Própria de Guido! - como é que a pode ter obtido? Ela é indubitavelmente na pintura o que a Vénus é na escultura.’

            ‘Ha!’ disse ele, pensativamente, ‘a Vénus? - a bela Vénus? - a Vénus dos Médici? - a da pequenina cabeça e cabelo dourado? Parte do braço esquerdo [aqui a sua voz afrouxou até ser dificilmente audível], e todo o direito, são restaurações, e na coquetaria desse braço direito reside, penso, a quinta-essência de toda a afectação! Dêem-me o Canova! O Apolo, também, é uma cópia - não pode haver dúvidas quanto a isso - cego idiota que sou, que não consigo reconhecer a orgulhosa inspiração do Apolo! Não posso deixar - tenham piedade de mim! - não posso deixar de preferir o Antínoo. Não foi Sócrates que disse que a estatuária encontrou a sua estátua no bloco de mármore? Portanto, Miguel Ângelo não foi, de modo nenhum, original no seu dístico:

 

                        “Non ha l’ottimo artista alcun concetto

                        Che un marmo solo in se non circunscriva.”’

 

            Tem sido, ou dever-se-ia notar, que à maneira dos verdadeiros cavalheiros, nós estamos sempre cientes de uma diferença em relação aos modos vulgares, sem sermos imediatamente e em termos precisos capazes de determinar em que consiste essa diferença. Permitindo-me aplicar esta observação, em todo o seu sentido, na atitude exteriorizada pelo meu companheiro, senti-a, naquela atribulada manhã, ainda mais completamente aplicável ao seu carácter e temperamento  moral. Nem consigo eu definir melhor aquela peculiaridade de espírito que me pareceu pô-lo tão radicalmente à parte de todos os outros seres humanos, senão chamando-lhe um hábito de intensa e continuada reflexão, alastrando mesmo sobre as suas mais triviais acções - anunciando-se nos seus momentos de diletantismo - e entretecendo-o com os seus numerosos ápices de jovialidade - como víboras que se contorcem para fora dos olhos das máscaras sorridentes nas cornijas em volta dos templos de Persépolis.

            Não pude deixar, contudo, de observar repetidamente, através do tom combinado de leveza e solenidade com que ele rapidamente discorreu sobre assuntos de pouca importância, uma certa atmosfera agitada - um grau de nervosa unção em acção e em discurso - uma inquieta excitabilidade de modos que me pareceu em todos os momentos incontabilizada, e que em algumas ocasiões me chegou a alarmar. Frequentemente, também, estacando no meio de uma frase cujo começo tinha aparentemente esquecido, pareceu-me que escutava com a mais profunda das atenções, como se estivesse simultaneamente em momentânea espera de uma visita, ou à escuta de sons que terão tido existência tão somente na sua imaginação.

            Foi durante um destes devaneios ou pausas de aparente abstracção, que, ao virar uma página da belíssima tragédia do poeta e erudito Poliziano, o “Orfeu” (a primeira tragédia nacional italiana), que estava perto de mim sobre uma otomana, encontrei uma passagem sublinhada a lápis. Era uma passagem quase no fim do terceiro acto - uma passagem da mais arrebatadora excitação - uma passagem que, apesar de infecta impureza, nenhum homem jamais lerá sem um estremecimento de estranha emoção - nem mulher sem um suspiro. A página inteira estava manchada de lágrimas recentes; e, numa folha introduzida na página oposta, estavam os seguintes versos ingleses, escritos num estilo tão contrário aos caracteres peculiares do meu companheiro, que tive alguma dificuldade em reconhecê-los como seus:

 

 

                        Eras pra mim o todo, amor,

                        Por que minh’ alma se extinguia -

                        Ilha verde no mar, amor,

                        fonte brotando em arca pia

                        laureada de feérico fruto e flor;

                        E toda a flor pra mim se abria.

 

 

                        Sonho de nímia luz que finda!

                        Sonho, astro Esperança nascente

                        sombreado jovem ainda!

                        Diz voz futura descendente:

                        “Adiante!” - mas de outr’ era vinda

                        plana minh’ alma em pego assente,

                        Quieta - de susto - a voz se finda!

 

                        Ai de mim! Que farei de mim?

                        Sem luz na vida pra jamais.

                        Jamais! - ‘Nunca mais - nunca mais

                         (reza o solene oceano assim

                        à beira mar p’ra os areais),

                        florirá o que em raio teve fim

                        nem águia abatida voará mais.

 

                        Agora, são as horas transes;

                        E todos os sonhos nocturnos

                        hu negros olhos fazem lanços,

                        Onde há sinal de pés ebúrneos

                        que, leves, bailam entre os anjos

                        Danças de italianos turnos.

 

 

                        Ai! Pelo tempo esconjurado

                        Em que p’ra além te arrebataram

                        Do amor p’ra era de pecado

                        e p’ra leito que profanaram! -

                        De mim e nosso céu nublado,

                        Onde chorões prata choraram.

 

            Que estes versos estivessem escritos em inglês - língua que pensava que o seu autor não dominasse - não me surpreendeu muito. Estava bem ciente da extensão dos seus conhecimentos, e do singular prazer que tomava em dissimulá-los para surpreender quem os descobrisse; mas o local que figurava na data, devo confessar, não me poupou a surpresa. Tinha sido originalmente Londres, e posteriormente cuidadosamente rasurado - não o bastante, contudo, para esconder o termo de olhos atentos. Digo, isso não me poupou o pasmo; já que me lembrava bem que, numa prévia conversa com o meu amigo, perguntei-lhe particularmente se alguma vez tinha encontrado em Londres a  Marquesa di Mentoni (que alguns anos antes do seu casamento residira nessa cidade), quando a sua resposta, salvo erro, me deu a entender que nunca tinha visitado a metrópole da Grã-Bretanha. Devo também aqui mencionar que mais de uma vez ouvi dizer (sem, é óbvio, dar crédito a notícia envolvendo tantas improbabilidades), que a pessoa de quem falo, não era só por nascimento, como também por educação, um Inglês.

            ‘Há um quadro,’ disse ele, sem ter percebido que tinha notado na tragédia, - ‘há ainda um quadro que não viu.’ E correndo um reposteiro, descobriu um portentoso retrato da Marquesa Afrodite.

            Arte terrena não conseguiria fazer mais no delineamento da sua beleza sobre‑humana. A mesma figura etérea que permanecera diante de mim na noite precedente sobre os degraus do Palácio Ducal, permanecia diante de mim mais uma vez. mas na expressão do seu rosto, toda irradiando sorrisos, continuava a defraudar-se (incompreensível anomalia!) naquele instável matizado de melancolia que sempre será considerado inseparável da beleza perfeita. O seu braço direito estendia-se curvado sobre o peito. Com o esquerdo insinuava um vaso de formas curiosas. Um pequeno e feérico pé, deixado à mostra, quase não tocava o chão, e, vagamente discerníveis na brilhante atmosfera que parecia envolver e canonizar o seu encanto, flutuava um par das mais delicadamente imaginadas asas. O meu olhar desceu da pintura para a figura do meu amigo, e as vigorosas palavras do Bussy D’Ambois de Chapman, subiram-me instintivamente aos lábios:

 

                                                           ‘Ergue-se

                        Como uma estátua romana! E assim ficará

                        Até a morte o tornar em mármore!’

 

            ‘Venha comigo,’ disse passado algum tempo, virando-se para uma mesa de prata maciça ricamente esmaltada, sobre a qual estavam alguns frascos fantasticamente matizados, junto a dois largos vasos etruscos, afeiçoados às mesmas extraordinárias formas do que aparecia em primeiro plano no retrato, e cheio do que me pareceu ser Johannisberg. ‘Venha,” disse, abruptamente, ‘bebamos! Ainda é cedo - mas bebamos. É, na verdade, ainda cedo,’ continuou ele em tom divertido, enquanto um querubim com um pesado martelo dourado fazia o salão estremecer com a primeira hora depois do nascer do sol: ‘é, na verdade, ainda cedo - mas o que é que isso importa? Bebamos! Façamos libações ao sol solene que além se ergue e que estas lâmpadas e incensórios sem preço tentam ansiosamente conter!’ E fazendo-me brindar com um largo copo, sorveu em rápida sucessão várias taças de vinho.

            ‘Sonhar,’ continuou, retomando o tom do seu diletante colóquio, enquanto levantava até à soberba luz de um incensório um dos seus magníficos vasos - ‘sonhar tem sido o motivo da minha vida, por essa mesma razão tenho eu fundado para mim mesmo, como pode ver, uma clareira de sonhos. No coração de Veneza poderia eu ter erigido algo melhor? Vê à sua volta, é verdade, uma miscelânea de adereços arquitecturais. A castidade jónica é ofendida pelos temas antediluvianos, e as esfinges do Egipto estendem-se sobre tapetes de ouro. Apesar disso, o efeito é incongruente apenas para os acanhados. A harmonia de estilos locais, e especialmente temporais, são os fantasmas que aterrorizam a humanidade, desviando-a da contemplação do sublime. Eu mesmo já fui um decorador segundo os preceitos do bom gosto; mas essa sublimação do ridículo enfadou-me o espírito. Tudo isto é agora o que melhor se ajusta ao meu propósito. Como estes incensórios cheios de arabescos, o meu espírito contorce-se em fogo e o delírio desta cena enforma-me nas visões selvagens dessa terra de sonhos reais para a qual estou agora a partir.’ Aqui fez uma pausa abrupta, curvando a cabeça na direcção do seu peito, e pareceu-me ouvir um som que eu não conseguiria ouvir. Passado algum tempo, erguendo o seu arcaboiço, olhou para cima e proferiu os versos do Bispo de Chichester:

 

                        ‘Espera-me onde estás, não faltarei

                        Em ir ao abismo onde te sei.’

 

Logo após, denunciando o poder do vinho, estendeu-se ao comprido numa otomana.

            Passos rápidos ouviam-se agora a subir as escadas, e rapidamente sucederam-lhes uma forte pancada na porta. Apressei-me ao antecipar um segundo distúrbio quando um pajem da casa de Mentoni irrompeu na sala, gaguejando numa voz chocada pela emoção, as incongruentes palavras, “A minha senhora! - a minha senhora!- Envenenada!- Envenenada! Oh, bela, - oh, bela Afrodite!”

            Confuso, corri à otomana, e tentei convocar o adormecido para tomar conhecimento da notícia alarmante. Mas os seus membros estavam rígidos - os seus lábios estavam lívidos - os olhos ainda à pouco irradiantes estavam enleados na morte. Recuei cambaleando até à mesa - a minha mão caiu sobre um frasco quebrado e enegrecido - e uma noção da inteira e terrível verdade acudiu subitamente sobre o meu espírito.

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publicado por Manuel Anastácio às 19:14
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