Fernando Lopes-Graça, Concerto da Camera col Violoncello Obbligato, 1965
Uma leitora, de seu nome Zélia Diana, deixou-me este pequeno comentário à minha tradução/versão de "A Noite Escura da Alma" de São João da Cruz:
"O interessante da arte é que cada um a vê com um olhar diferente, e a interpreta também diferente. Mas sinto-me obrigada a esclarecer: É um poeta místico da Igreja Católica escrito por São João da Cruz por volta de 1570. A Amada que foge é qualquer cristão que se arrisca a seguir O Amado (Cristo) pela noite escura (a cruz) até que ele adormeça (morra) em lugar onde ninguém vai (as lutas da vida), preferindo adormecer (a morada sossegada). Mais informações no google."'
Gostaria de tecer alguns comentários a este comentário. A primeira frase tem um interesse particular porque corresponde a um lugar comum que praticamente não é contestado por ninguém. O valor intrínseco da arte, seja ele identificável com um dado significado ou não, depende do ponto de vista que é tomado por quem frui a obra. Só que não concordo com uma coisa: com a interpretação. Uma obra de arte não tem de ter, necessariamente, uma interpretação, nem que estejamos a falar de uma interpretação subjectiva. Eu não interpreto o Concerto da Camera col Violoncello Obbligato do Fernando Lopes-Graça de forma alguma, ainda que possa existir uma interpretação ou, melhor, uma intenção inicial no espírito do autor ao compor a peça musical. A música e a experiência que provoca no ouvinte, seja prazer, dor, incómodo, alívio, ou a mistura de tudo isso e muito mais em porções variáveis não tem significado em si mesmo, da mesma forma que a vida não tem significado em si mesma. Mesmo existindo Deus e um propósito divino, a vida continua a não ter significado, tal como a existência de Deus não tem significado por si mesmo. É contra esta evidência que a religião, um dia, inscreveu o axioma da identidade divina com a palavra (ou o Verbo). Deus é palavra, ou Verbo, porque atribui significado às coisas. Transforma o Mundo (a Criação) em algo que pode ser compreendido (até certo ponto) pelo Homem. Mas só até certo ponto, não porque o discurso ou livro da Criação se torne demasiado complexo para as nossas humanas limitações, mas porque todo o discurso da realidade, seja ela como for, será sempre limitada a uma realidade e só uma realidade. Mesmo que Deus seja infinito e feito de múltiplas realidades e universos paralelos ou mesmo em intersecção uns nos outros, haverá sempre uma unidade nessa multiplicidade, e havendo uma unidade, a palavra divina reduzir-se-á a si mesma, e o significado desaparecerá. É por isso que Deus precisa dos homens... ou dos anjos, já agora - que são seres assim um bocado para o manhosos porque tendo mais poderes que o homem e acesso a outras esferas da realidade, parece que são um bocadito ou mesmo muito mais limitados que o homem, e isso não se deve só à obediência cega. O diabo não foi obediente e não é por isso que se possa dizer que seja uma grande inteligência; sendo tal como o pintam, é apenas um miúdo birrento e invejoso. Aliás, toda a mitologia que envolve Deus é reflexo da infantilidade da humanidade. A ideia de Deus pode ser uma ideia elevada e motivadora de procura de perfeição e amor, mas tudo o resto: anjos, santos, diabos, infernos, paraísos, trindades, imaculadas conceições, tudo isso, pelo menos tal como nos é contado, é de uma infantilidade tremenda. Não consigo imaginar Deus a cuidar de uma creche celestial com sala de castigos no andar de baixo. Mais que infantil, é uma ideia ridícula...
Repare-se no que a minha comentadora diz logo a seguir: que me vai esclarecer. Há alguma ingenuidade caridosa na intenção de me esclarecer e iluminar. Creio que a Zélia pensou que eu interpretava o poema de São João da Cruz como sendo um poema de amor adolescente. Acontece que, não sendo um poema de amor adolescente, a emoção que se pressente no poema é similar, da mesma forma que os poemas de Teresa de Ávila, não sendo poemas eróticos, são-no de uma forma ainda mais clara e explícita.
Confesso, contudo, que não fiquei esclarecido com a explicação da Zélia que, aliás, considero até um pouco confusa. Como ela diz, este é um poema (e não "poeta" - creio que se enganou a escrever) místico. Ora, aquilo que é místico não se pode explicar com meia dúzia de correlações, como é feito. É místico porque transcende a Palavra, da mesma forma que os amantes se transcendem um ao outro no acto de se amarem. É místico porque deixa de fazer sentido, porque o significado se perde, porque tudo se anula, tudo se conjuga. Tudo passa a ter significado pelo simples facto de não o ter. É nessas ocasiões que se compreende que a existência ou a inexistência de Deus é irrelevante. Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, no Inferno, na dor eterna, compreender-me-iam. E não trocariam o seu inferno por paraíso algum.
Ah: já repararam como o Google começa a ser mais do que a palavra? Mais informações no Google é bonito. Ingénuo (ainda que com uma certa sobranceria arrogante), mas bonito. Sempre gostei de publicidade.