Terça-feira, 26 de Maio de 2009
Um murro no estômago é como a lua a fazer caretas aos louva-a-deus

O túnel de vento de Totoro, de Joe Hisaishi (da banda sonora de "O meu vizinho Totoro)

 

A Anabela Lopes (autora de "Lua: A Princesa da Floresta Dourada", a quem estendo de bom grado o cachimbo da paz) passou por aqui e apanhou com o meu texto de ontem que... pronto, era um pouco violentozito. Mas eu tenho esse péssimo hábito de bater forte e feio em quem gosta de uma coisa tão sensaborona e deslavada como Paulo Coelho e de coisas tão adocicadas e enjoativas como da Danielle Steel. Mas vamos por partes: não é errado gostar de Paulo Coelho nem de Danielle Steell. Nesse sentido, gostos não se discutem. Mas os gostos podem-se discutir, e devem ser discutidos, porque é isso que torna a literatura, enquanto fenómeno social, divertida. Claro que não vou ler Paulo Coelho quando tenho tantos autores que me conseguiriam encher a alma e com tantos títulos à espera de serem lidos por mim: Torga, Bellow, Szymborska, Tolstoi, ui... Ler Paulo Coelho é, acima de tudo - para mim - um enorme desperdício de tempo e de vida. Mas isso é para mim. A Anabela (tal como grande parte dos meus colegas de profissão) gosta de Paulo Coelho. Ora, está entre a grande fatia da humanidade que torna este o escritor lusófono mais vendido de todos os tempos. O que - quanto a mim - é uma injustiça, mas eu não tenho nada que dizer sobre a justiça do que as pessoas gostam de ler. Ler é como fazer amigos - corrijo, é fazer amigos - e a maior parte das pessoas prefere amigos de fachada a amigos verdadeiros. Os amigos verdadeiros não são aqueles que dizem aquilo que queremos ouvir, mas aquilo que nos transforma, por dentro, em pessoas melhores (olha, assim até pareço o Paulo Coelho, ehehe). O que significa que, por vezes,  descobrimos que os nossos melhores amigos são aqueles que sempre julgámos que nos detestavam (olha eu a fazer de Paulo Coelho outra vez - bem diz o outro que os coelhos são piores que as moscas a reproduzirem-se). Um dia, reescrevi aqui no meu blogue um poema muito chunga ao estilo do Paulo Coelho (e a Gerana bateu, logo, certeira aqui no pobre do moço) que, a certa altura, dizia que o Amor é a mais escura via de comunicação. E é. O Paulo Coelho não escreve muitos disparates (escreve alguns, e de palmatória). Escreverá, com certeza, coisas acertadas. Coisas que parecem profundas. Mas há uma diferença entre a profundidade de uma gruta escavada pelo tempo e pelas águas e a profundidade aberta com a força bruta de uma broca. Paulo Coelho é uma broca. Mas avancemos: a Anabela apanhou um murro no estômago com as minhas palavras. Confesso que não era essa a minha intenção.

 

A Anabela diz que está a dar os seus primeiros passos na literatura... Eu discordo. Os primeiros passos na literatura são dados quando aprendemos a ler. E a Anabela (sei eu, que a ouvi) aprendeu a amar a leitura desde cedo. Isso é bonito. Mas quando diz que eu a julgo, já terei que concordar e discordar. É verdade e não-verdade. Eu julgo as pessoas por aquilo que lêem. Julgo-as enquanto leitoras, não enquanto pessoas. Fui tendo (e tenho) amigos que lêem Paulo Coelho e que sabem  que eu lhes reprovo tal gosto. Adoraria que eles chegassem ao pé de mim e dissessem: olha, hoje abri um livro do Coelho e apercebi-me de que aquilo é um hambúrguer do MacDonald's. O pior é que as pessoas gostam de hambúrgueres do MacDonald's (pronto, ou do BurgerKing, é-me indiferente). Eu julgo, sim, a Anabela por ler Paulo Coelho e por ler Danielle Steell. Não a estou a julgar como pessoa, mas como leitora (e, inevitavelmente, como escritora). Eu tenho que ter alguma razão para pegar num livro, já que tenho tantos à espera de serem lidos. Se eu tivesse todo o tempo do mundo, começava por ler Corín Tellado, mas eu não tenho todo o tempo do mundo. Por isso, e como sei que posso morrer amanhã ou daqui a um minuto, prefiro ler autores que me digam coisas que valham a pena. Ora, se o Paulo Coelho apenas diz coisas vazias disfarçadas de coisas profundas e plenas de significado (ai as vezes em que já vi pessoas adoráveis a ler excertos do Paulo Coelho com a lágrima ao canto do olho, à espera que eu ficasse também de lágrima no canto do olho... e apenas viram o meu ar snob e enjoado - não sou capaz de fingir adoração por coisas medíocres e mercenárias), o que é que a Anabela espera, que eu creia que gostarei de ler o "Lua"? Acredita que, se calhar, até vou gostar de o ler (que, agora, vou ler mesmo...), mas o cartão de visita não é muito convidativo. Eu tenho de julgar as coisas de acordo com aquilo que conheço delas. E tal julgamento não vai pôr ninguém na prisão, por isso, fico descansado.

 

A Anabela também lê autores "conceituados" como Eça de Queirós e José Saramago. Não sei bem o que seja isso de autores conceituados. Para mim, Eça e Saramago são dois escritores maiores. Se a Anabela os lê, ainda bem. Quem ganha, em primeiro lugar, é a própria Anabela, mas nestas coisas do gostar, fica-me sempre o travo amargo do Paulo Coelho... A Anabela diz ainda que é errado julgá-la como escritora pelo facto de gostar de ler Coelho e Steel, até porque eles não a influenciaram... Isso parece-me estranho. Os nossos escritores preferidos deviam ser aqueles que mais fortemente nos deveriam influenciar, fosse lá de que maneira fosse (nem que fosse pela via de não os querermos imitar). Não é errado ter uma ideia pré-concebida de um autor a partir dos livros que ele lê. Isso nem sequer é julgar! Um julgamento só pode vir depois das provas, e eu não as tenho porque não li o livro! Mas posso fazer uma aposta. Fazemos todos os dias apostas quando compramos um livro porque gostamos da capa ou do título ou porque aquela senhora com aspecto fino disse que o livro não presta (e nós, em espírito de contradição, vamos a correr a comprá-lo). Há sempre uma razão para pegarmos num livro antes de outro. Ouvir o autor a dizer que o seu autor preferido é o Paulo Coelho não me motiva a lê-lo. Se a Anabela tivesse dito J. K. Rowling, estaria já neste momento com o livro, autografado, na minha mesa de cabeceira.

 

Quanto ao murro no estômago: Anabela, eu não vou ser mais suave nas palavras a respeito de um escritor por ele ser jovem. Eu escrevi algo sobre uma impressão que tive. E, ainda por cima, incentivei as pessoas a demonstrarem-me o contrário, isto é, que o livro é bom apesar do meu preconceito. Repara que eu até me assumi como preconceituoso. Sim, tenho preconceito contra perfumes demasiado enjoativos. Tenho preconceito contra o sabor da papaia demasiado madura. E há mal nisso em dizê-lo num blogue público? Não, não há. A Anabela não pretende agradar a todos. E faz a Anabela muito bem, porque nunca o conseguirá. Mas não posso concordar quando diz que é de mau gosto eu manifestar-me aqui. Eu não falei com a Anabela pessoalmente, porque estava a trabalhar e não podia estar na amena cavaqueira. Mas é meu direito, enquanto leitor, e enquanto cidadão, pronunciar-me a respeito de questões estéticas. Se eu disser aqui que não gosto do Paulo Portas, nem do Sócrates (e não gosto nem de um nem de outro), eles não me vão aparecer aqui amanhã a dizer que eu devia ter falado com eles antes... É verdade que eles se estão nas tintas para a minha pequena pessoa, mas essa não é a questão: a Anabela fez uma coisa maravilhosa que foi escrever e editar um livro. Eu posso não ter gostado de a ouvir a citar tais nomes como escritores preferidos, estou nesse direito. E estou no meu direito de dizer e contar, e criticar, aquilo que ouvi num espaço público. Aceite o meu convite para o debate, defenda o Paulo Coelho e a Steel se assim entender, mas não fique magoada. Seja forte e não se deixe incomodar por palavras críticas. A Anabela diz que, em conversa à parte, teria oportunidade de se defender. A Anabela não precisa de se defender. Precisa apenas de aceitar o debate.

 

Vou terminar com mais um conselho que, vou ser sincero, não sei se é à Paulo Coelho ou não. Seria o conselho que daria a uma filha minha que estivesse na sua situação, perante um professorzeco que a estivesse a criticar pelos seus gostos e pela sua forma de escrever: Anabela, não tens que julgar que o murro no estômago te tornará mais forte. Não. Um murro no estômago é sempre uma violência que nos desarranja por dentro. Tenta, por outro lado, ver se este professor, que não conheces de lado algum, te queria dar, de facto, um murro no estômago. Acredita que não. Não precisas de concordar comigo. Não precisas de deixar os teus autores favoritos de lado. Não precisas de dizer que afinal gostas é de este ou daquele escritor. Não. Tens sempre de ser fiel a ti mesma e à tua razão. E sermos fiéis a nós mesmos inclui evoluirmos, darmos o braço a torcer. Ouvirmos os outros e aprendermos com os outros. Não devemos, jamais, aceitar murros no estômago. Deves, antes, pelo contrário, ignorar aquilo que for dirigido para ti na forma de ataque pessoal (assim, o murro passa ao lado) e aprender algo com a visão dos outros. Podes até nem concordar com aquele crítico, nem terás de concordar: o importante é que tentes ver o que ele quer dizer. E, depois, aproveita aquilo que te ficar entre as mãos. O PC lá disse algures que  “O bom combate é aquele que é travado em nome de nossos sonhos." É uma frase vazia. Não quer dizer nada. Por isso, cabe lá tudo. Eu ponho lá isto: que enquanto for vivo, estou aqui para discutir. Foi por isso que incentivei os meus alunos a lerem o teu livro (até porque tenho a certeza que terão ainda mais curiosidade em lê-lo depois de saberem que reprovo os teus gostos literários de eleição): para que eles leiam e o possam defender (ou o contrário). Para que eles o possam discutir. Porque para mim, os gostos discutem-se. Não servem eles para outra coisa. O bom combate não é aquele que é travado em nome de nossos sonhos - é aquele que é travado sem que ninguém perca a vida e sem que ninguém leve murros no estômago, é o combate em que todos ficam a ganhar. Espero que a Anabela escreva os seus quatro livros (que, estando eu vivo, os lerei aos quatro, e cá estarei para os comentar) e que continue a usar e a abusar do "cor-de-rosa brilhante". Não prometo que vá gostar. Mas prometo que serei sincero na minha avaliação. Sem murros. Espero que a Anabela faça o mesmo e aceite o combate.

 

As melhores felicidades. A sério.

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publicado por Manuel Anastácio às 21:31
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De Maria Helena a 27 de Maio de 2009 às 21:42
Pensei que fosse óbvio que o Professor era para contrapor ao Senhor :-))))))
Fica muito mais giro com a espessura do nome Manuel :-))))))
(querem ver que já nem sorriem?!!)
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