Sexta-feira, 11 de Maio de 2018
Professores IV (republicação)

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Maria Judite Serrão Andrade. Na falta de uma fotografia decente, socorro-me de uma captura de um vídeo velhinho.

 

Doutora Maria Judite Serrão Andrade, licenciada pela Universidade de Coimbra em Ciências Históricas e Filosóficas, fundadora do Externato Rainha Santa Isabel no Sardoal e directora do mesmo até 1980. Dá actualmente nome à escola onde estudei durante sete anos, e onde dei aulas durante um ano, quando era ainda apenas a escola do Sardoal sine nomine. A Doutora, de quem, em vão, procurei alguma nota biográfica relevante na Internet, foi minha professora no sexto ano de escolaridade, de “Estudos Sociais” e de Língua Portuguesa. Rapidamente me adoptou como aluno predilecto desse ano, sem falsas intenções igualitárias, que não tinha. Era implacável com a ignorância e com a mediocridade. Cruel com os alunos que diziam e escreviam disparates. Trazia amendoins (para macacos), ou dizia que havia de trazer, para os alunos que, estando em tempo de “furo” se especavam a olhar para dentro da sala, perturbando a frágil atenção dos alunos por ela disciplinados na estrita observância do único e verdadeiro método de estudar: que consiste, basicamente, em estudar.

Mas interrompia frequentemente as aulas para recordar os momentos de catraia indisciplinada que se recusava a beijar a mão da Madre Superiora, no colégio interno que frequentava. Era simplesmente um hábito nojento, esse de beijar os dedos que não sabia onde teriam andado, provavelmente conspurcados ainda mais pelos beiços das suas colegas e das outras freiras a quem passava a vida a infernizar com partidas que nos faziam rir a bandeiras despregadas, mas que jamais poderíamos pensar em executar, até porque os pais pagavam o suficiente às freiras para a aturarem, o que supostamente, os nossos pais, com os filhos no ensino público, não faziam.

Era conhecida pela alcunha de “Dona Xepa” devido ao facto de coxear, tal como a personagem da novela. Não havia professora mais temida nos anais daquela escola. Contou-nos como passara a claudicar o passo, numa viagem por um país nórdico que a minha memória já não consegue localizar. Comprara com o marido uma gigantesca lata de arenques que, numa travagem brusca lhe magoou irreversivelmente a perna. Era, aliás, levada de forma absolutamente reverencial, de carro, até junto à porta de um dos pavilhões onde se situava a antiga sala dos professores. Sala onde, um dia, me chamaram, para elogiarem as minhas capacidades de aluno de excelência num meio onde apenas florescia a exiguidade da burrice, e de onde saí humilhado pelo facto de, desprecavido, ter aparecido com as mãos todas sujas de tinta de caneta e com o pull over salpicado da feijoada do almoço na cantina. Era ainda uma criança – disse um dos professores. Obrigado. Não fazia ideia. Onde é que é a saída?

No início do ano lectivo, as turmas que calhavam com a “Xepa” tremiam de medo. As histórias que corriam sobre o seu rigor draconiano e veneno corrosivo das palavras que derramava sobre os alunos enformavam um tipo de mitologia que a tornavam numa terrível divindade intocável, cujo ascendente político e social (por nós pressentido mas mal compreendido no seu significado) tudo legitimava. Mas, para mim, rapidamente se tornou numa figura algo patusca, de nariz grande, ao género de Karl Malden, que frequentemente ficava roxo quando se assoava e irritava. E quando, entusiasmada, explicava como, em vez de beijar a mão à Madre Superiora, se aproveitava do apêndice nasal para fingir que cumpria o preceito.

A doutora Judite merece, de facto, que o seu nome perdure naquela terra que hoje já não é tão árida, como antes, em cérebros. Estes fazem-se, semeiam-se e levam tempo a germinar. Não com os caldos de baixa exigência dos tempos que correm, nutritivos apenas para bactérias. A pressão aplicada com rigor num corpo flácido espevita a circulação. Lembro-me bem das composições enxaropadas que escrevia quando estava nesse sexto ano de escolaridade. Lembro-me bem das críticas ferozes da Doutora Judite. Pode não me ter tornado um grande escritor, mas abriu-me bem os olhos para o ridículo que se encerra em certas conjunções de palavras e para a beleza das ideias, sem as quais as palavras se perdem, como sons sem eco.

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publicado por Manuel Anastácio às 23:57
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Domingo, 18 de Fevereiro de 2018
Prometo cenas

Para o César Machado

 

Prometo tentar dizer-te que falho
Constantemente,
E que sou imperfeito,
E que as nossas preocupações
Diárias são tão sérias
Quanto marcar férias
E cumprir objetivos.
Foca-te na luz dos mistérios
Mais sérios,
Órficos, que por furtivos aqui não cabem.
Os dias passam
E há mais clientes.
Passam as horas
E mais vaidades eclesiásticas há
A satisfazer. Mais para fazer.

Foca-te na espiral de Tântalo.
Sísifa, a vontade da clientela
Infernal não pode esmorecer.
Foca-te, mas não te fiques
Por aí.
Atira-te aos leões como gatinhos,
Procura nas suas garras os carinhos
Que outros acham na indolência.
Haja paciência.
Prometo pedras
Prometo chagas
Batatas fritas.
Maionese light.
Sombras negras em escala cinza
E algemas de cristal.
Prometo não estragar tudo
Por ser perfeito.
Não me leves muito a peito.
Há ainda muito a tentar.
A tentar-me,
E não sou Cristo.
Sou apenas isto,
Perfeito apenas.
Prometo cenas.
Prometo falhar.

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publicado por Manuel Anastácio às 14:55
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Um haiku

Para a Ana Rute Marcelino

Cheiro de alecrim.
O chão, pela procissão,
Parece um jardim.

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publicado por Manuel Anastácio às 04:34
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Quarta-feira, 27 de Dezembro de 2017
Revista de imprensa 27/12/2017

Putin apresenta-se como candidato independente às presidenciais. - a independência é um estado de espírito.

 

EUA cortam 240 milhões de euros à ONU depois do voto contra mudança de embaixada - está certíssimo. Ninguém tem de pagar pelas virtudes dos outros. 

 

 

publicado por Manuel Anastácio às 14:37
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Sábado, 30 de Setembro de 2017
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Um dia, um escorpião queria atravessar um rio. Porque é que queira atravessar o rio, ninguém sabe. Houve quem inventasse que era por curiosidade. As montanhas do outro lado pareciam-lhe imensamente mais interessantes que as planícies monótonas onde até então tinha arrastado a sua existência. As montanhas seriam um desafio. Um objetivo sem sentido, mas que seria um objetivo. E para quem não tem objetivos ou não reconheça imediatamente os que tem, qualquer objetivo parece bom. Mas há quem discorde. E tal discórdia não é inocente perante os factos que se seguem e que são do conhecimento geral, principalmente desde que a história foi contada num filme onde uma mulher foi nomeada para Óscar de melhor ator secundário. A história não é velha, mas é mais conhecida do que se fosse.

Há quem diga que o escorpião queria fugir de um incêndio. Portanto, e não tendo eu paciência para procurar mais razões que tenham levado a tão desmesurado desejo de ultrapassar um acidente geográfico, posso apenas acrescentar que o escorpião podia, simplesmente, querer fazer o que fez a seguir. Mas não quero com isso chegar a qualquer conclusão sobre a natureza humana.

Querendo o escorpião atravessar o rio, pediu a uma rã que o ajudasse. A rã desconfiou, mas, pouco interessa qual o motivo, lá aceitou carregar com um bicho que, em princípio, jamais deixaria aproximar-se. O escorpião usou os seus dons de retórica ou aproveitou-se da inocência da rã. Na verdade, se tudo aconteceu por uma razão ou por outra é indiferente. Ou ambas as razões são uma só. Não interessa, por agora. As motivações pessoais contam pouco nesta história e, talvez tenha sido mesmo por isso que se tornou numa história que, mal tendo aparecido, logo pareceu que já existia há mais tempo, como aquelas músicas que, sendo ouvidas pela primeira vez, parecem já ter sido ouvidas noutro sítio.

Cada pessoa acredita saber a razão porque é que o escorpião queria atravessar o rio, da mesma maneira que acredita conhecer a razão que terá levado a rã a aceitar dar boleia, não a um estranho mas a um conhecido inimigo.

A verdade é que o escorpião, a meio do caminho, ferrou as costas da rã e deu cabo da vida aos dois. A rã envenenada, ele afogado. A rã ainda pergunta: mas porquê? E o escorpião diz que era a natureza dele.

E ficam as pessoas muito satisfeitas com a justificação. Gente má é má e pronto. O resto são histórias.

publicado por Manuel Anastácio às 07:11
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